Os dias eram assim
Naquela época o tempo custava à passar; - “Mãe! Quando eu farei sete anos?”, “Falta muito! Tu só tem cinco anos.”, “E quinze anos, mãe! Falta muito?”, “Pergunta para o teu pai quando ele chegar do trabalho. Oh, guri perguntão!”
Os dias eram assim; natal, páscoa, aniversário demoravam à chegar. Gente nascendo e ninguém morrendo; o primeiro morto da família foi o vovô Juca, e eu estava com mais de vinte anos quando aconteceu. Foi assim que a Morte descobriu o endereço da família, com o passar dos anos fez um rapa; sobrou um tio e quatro tias. E eram vinte e seis; doze por parte de pai.
Ninguém passava fome; os meninos usavam calças curtas com suspensórios de pano, alpargatas ou pé no chão, camisas só no tempo frio. As meninas sempre de vestidos compridos, cheios de rendas, tranças ou maria-chiquinha. Pão com mel, para quem podia, não existia margarina, e só os ricos passavam geleia no pão. Geleia? Eu nem sabia que existia.
Hora de criança dormir, sete da noite; depois, quando chegou a televisão o horário mudou. Oito horas e a propaganda dos Cobertores Parayba anunciava; - “Tá na hora de dormir, não espere a mamãe mandar, um bom sono pra você, e um alegre despertar.”
Muitas coisas eram proibidas; falar palavrão, desrespeitar os mais velhos, mentir, roubar, xingar professora, brigar com os irmãos e primos. Muitas exigências; beijar a mão dos avós, pedir a benção de pai e mãe ao acordar, nunca esquecer de rezar ao anjo da guarda antes de dormir, e sempre desejar um “dorme com Deus, pai... Dorme com Deus, mãe.”
Não existia ostentação; ostentação era ter uma caixa de lápis de cor, bolinhas de gude coloridas, muitos gibis. Os gibis eram trocados semanalmente na pracinha; colocados no chão, a meninada espiando, e fazendo a troca; dois Pato Donald por um Tarzan... Um Fantasma por um Mandrake...
Um livro era um tesouro; uma enciclopédia coisa rara. Circo uma vez por ano, matinés uma vez por mês, banho todos os dias. Somente após concluir a “lição de casa” se podia brincar, e como tinha lição!
As meninas brincavam de ciranda cirandinha, amarelinha, chicote queimado, escravos de Jó, casinha e bonecas, e eram proibidas de brincar de médico com os meninos. Os guris jogavam taco, triângulo, carrinho de rolimã, soltar pipa, nadar no riacho, ler e reler os gibis, amarrar latas no rabo dos gatos, e explodir uma bombinha dentro da lata.
Arroz, feijão, carne, farinha de mandioca, alface, tomate, cebola quase todos os dias. Aos domingos macarrão ou churrasco, com direito a uma garrafa de refrigerante, dividida irmanamente entre todas as crianças presente. Ai de quem reclamasse da comida; tinha que sair da mesa. Sobremesa de marmelada, ou goiabada cascão, um pedacinho só, não podia repetir.
Cada desobediência era uma bela surra; as mais leves um bom tapa perdoava, as mais feias só com vara de marmelo. Os vizinhos eram respeitados, e uma reclamação deles rendia uma boa coça. Vida terrível; a professora batia com a régua nos dedos dos alunos, mandava ajoelhar sobre grãos de milho, existia uma tal de palmatória que era o terror de todo o aluno mal educado.
Todo o dia, antes do começo das aulas; hastear a bandeira do Brasil, cantar o hino nacional, passar por uma inspeção para ver se as orelhas estavam limpas e os cabelos penteados. As mães morriam de vergonha quando o filho sujinho era pego na inspeção.
Os dias eram assim; ninguém morria por levar uma surra da mãe, não deixava de estudar por ter levado alguns safanões da professora, não ficava traumatizado por uma pessoa mais velha chamar a sua atenção... Também, não existia televisão, celular, internet, roupas de marcas, gravador, poucas máquinas fotográficas, tênis. Um rádio sempre ligado, música de ótima qualidade, novelas lacrimosas, propaganda de Melhoral que era o melhor, e não faz mal.
Bons tempos, assaltos eram raros, poucos pedintes, muito respeito, e todos na espera de um futuro perfeito; o futuro chegou, e deu no que deu. Saudade de quando os dias eram assim; - “Mãe! Quando eu farei sete anos? Falta muito?”
Gastão Ferreira/2017