O conto do bolo
Cidade antiga a nossa Princesa do Litoral, por Iguape passaram conquistadores espanhóis, aventureiros, piratas, bandoleiros, ladrões de ouro e corações. O Brasil criança engatinhou por aqui; a Linha de Tordesilhas cortou nossas terras. Índios foram apreados e escravizados bem antes dos africanos chegarem. Muito sangue manchou a paisagem. Somos parte da história deste pais.
Muitas lendas, causos além da imaginação, engodos, armadilhas, romance e traição. A cidade é palco antigo aonde a vida dança ao sabor da música. Donzelas de corações partidos, acenaram com alvos lenços em despedida, aos marujos que roubaram seus corações. Os velhos casarões contam histórias, suas memórias escondem segredos envoltos em lágrimas, suspiros, risos, comemorações.
Na Praça da Matriz, aquela que no passado foi um cemitério, crianças correm serelepes, nascem romances, passa o santo em seu andor, o boi, a juritica; as visagens e a alma dos mortos espiam o carnaval dos vivos. Do solar dos Toledos, o leão centenário observa mudo, o tempo passar; a bondade e a maldade, de mãos juntas, muitas coisas têm à nos contar.
Madame encomendou um bolo, pagou à vista e com muitas exigências; produto de primeira, coisa de gente fina, de quem conhece o melhor, confeitado e produzido com ingredientes importados. Era a cereja da festa de quinze anos de sua filha e herdeira.
Cidade pequena, onde o principal jornal é a boca do povo, a notícia da encomenda vazou, e o povo espalhou. Dona Mitiko, a doceira, queria caprichar no pedido, pois Madame era nervosinha, cheia de chiliques. A doceira não podia estressar a freguesa ricaça.
Pobres e nobres comentavam sobre o bolo; crianças se babavam, sonhando com a gostosura. As mães dos meninos pobres, tentavam explicar o porquê do não poder comprar algo tão especial; o bolo da menina herdeira seria feito da melhor farinha, com as frutas mais caras, com a cobertura mais vistosa.
Dona Mitiko gastou o que tinha e o que não tinha, o bolo seria o seu passaporte para o sucesso, e a porta de entrada para a conquista dos fregueses na burguesia; sua consagração como a melhor doceira da cidade.
Eram oito horas da noite; a mulher humilde bateu na porta: - “Madame mandou buscar o bolo”, disse.
Pela manhã a carruagem estacionou frente à casa, Madame e uma criada desceram: - “Madame quer o bolo”, informou a serviçal.
- “O bolo foi entregue ontem à noite, a pedido de Madame”, disse Dona Mitiko
Começou o barraco! O maior bate-boca, baixaria pura por parte de Madame, pois gente fina sabe ofender melhor do que gente grossa. Resultado? Madame estapeou Dona Mitiko, quebrou a sombrinha importada na cabeça da doceira, exigiu o dinheiro de volta, prometeu abrir um processo; juntou gente, o povo assistiu.
Ah, o povo! O povo aumenta, mas não inventa. Disseram que foi um golpe de Dona Mitiko, o primeiro “Conto do bolo” de que se tem notícia. Qual o problema? Não existe o “Conto do vigário”?
Desta vez o povo se enganou; Dona Mitiko era inocente, entregou o caríssimo bolo à Maria Rita, uma escrava liberta, e mãe de Pedro Benedito, um guri que jamais provara de uma guloseima tão especial. Sabe como é? Mãe é mãe!
Ninguém ficou sabendo quem passou o “Conto do bolo”, mas Pedro Benedito desconfiou; como a sua mãe, tão pobre, comprou um bolo tão caro? Não importa! O bolo realmente era uma delícia. O “Conto do bolo” virou lenda urbana, Dona Mitiko ficou famosa, a herdeira de Madame ganhou um colar de pérolas, e meia garrafa de ouro em pó. A vida sorriu, um bem-te-vi cantou; maldade e bondade, amigas inseparáveis, de mãos dadas, foram passear na Praça da Matriz.
Gastão Ferreira/2016