Salvos pela visagem
A vendinha do Seu Nico sempre foi ponto de encontro, um mercadinho simples, meio escondido na densa vegetação que embeleza o manguezal de Ilha Comprida. É nas tardes mansas, desentranhando as redes, que os caiçaras contam seus causos; quase sempre histórias de pescadores. Seu Dito Bacamarte sorriu; - “Ah se adivinhassem o sufoco pelo qual passei!”
O vento sul chegou sem avisar, maré de lua, eles distantes da vila. Onofre com trinta e cinco anos e Benedito, seu filho, um rapazote de quinze anos. Perderam muito tempo tentando reparar um velho cerco de bambus, a chuva intensa, raios e trovões, pouca visibilidade, acoitaram a canoa num barranco, junto a uma grande pedra.
Enquanto seu pai tentava retirar os pertences de dentro do barco, Dito escalou a ribanceira, avistou uma tapera, e na porta um velhinho; - “Perdido por estas bandas, semenino?”, perguntou o ancião.
- “Papai está tentando salvar nossas tralhas, tem muita água dentro da canoa.”
- “Vá ajudar seu pai! Enquanto isto faço um café bem quente para vocês.”
O velho se chamava Alfredo, fumava um pito de barro, usava uma bengala antiga que terminava numa cabeça de cobra entalhada; plantava mandioca, colhia cataia, caçava tatu, pescava de linhada, e assim conseguia sobreviver. Contou que muitos raios caiam na região, um deles chegou a trincar uma grande pedra, e que ele aproveitou a brecha e naquela manhã plantara uma muda de figo dentro da pedra, explicou. O vizinho mais próximo ficava a três léguas, seu compadre Jair. Ofereceu café com tapioca. Alguma coisa havia no café! Onofre e Benedito caíram no sono.
Acordaram cedo, estranharam! Estavam deitados fora da casa, e a porta estava trancada. Chamaram por Seu Alfredo, e nada; - “Vai ver o velho foi cuidar do roçado!”, disse Onofre, melhor seguir até a próxima casa à três léguas daqui.
A canoa aportou, a casa de madeira era junto ao lagamar, Onofre gritou de dentro do barco; - “Seu Jair! Seu Jair!”. Um rapaz de aproximadamente vinte anos veio ter com eles; - “Aqui não mora nenhum Jair”, falou o moço.
- “Não me diga! Seu Alfredo que mora frente a pedra partida, nos disse que era compadre dele.”
- “Pera aí que vou chamar meu avô!”
O homem devia passar dos oitenta anos, com a ajuda de uma bengala caminhava lentamente, seu nome era Pedro. Ouviu a história de Onofre, ficou comovido; - “Meu pai se chamava Jair, Seu Alfredo era meu padrinho de batismo, morreu há sessenta anos, frente à casa dele tem uma pedra lascada, e de dentro da pedra sai uma figueira...”
Meu pai quase endoidou, por pouco não morreu de tanto remar, ainda bem que nem notou que a bengala do Seu Pedro, era a mesma em que seu padrinho Alfredo se apoiava. Penso que somos os únicos, aqui na vila, que foram salvos por uma visagem; melhor nem contar!
Gastão Ferreira/2016