Tia Berenice

Tia Berenice foi a irmã mais nova de tataravó Engrácia; uma quase nobre minha tatá. Quando seu pai, o famoso alcaide Bartolomeu, comunicou que havia dado sua mão à um fidalgo português, ela fugiu de casa, e por carta notificou ao pai o motivo da rebeldia; jamais poderia viver sem as mãos que o progenitor ofertara, num ato impensado, ao nobre lusitano. Ela virou a piada favorita dos galhofeiros da vila por muitos e muitos anos.

O alcaide não desistiu de ter netos ilustres, e deu de mão beijada tia Berenice ao portuga. Ela não chegou a casar, o navio do noivo foi atacado por corsários, e ele desapareceu da história, mas um belo dia voltou e além de incendiar, saqueou a vila. Tia Berenice, um tanto lerda, não conseguiu escapar para o mato a tempo, e foi obrigada a beijar na boca toda a tripulação da nau flibusteira. Naquela época beijo na boca era pecado mortal, e a rapariga ficou marcada como devassa.

A notícia se espalhou pelos sete mares, e muitos navios piratas acostavam na vila. Não! Nada rapinavam, queriam apenas um beijo da donzela Berê. Deve ter distribuído muitos beijos, pois para cada ósculo ganhava um dobrão de prata, e seu baú estava abarrotado. Com o passar do tempo ela envelheceu, virou um tribufu, e começou a pagar pelos beijos; adeus baú, adeus joias, adeus anéis.

O alcaide foi deposto, a coroa portuguesa descobriu que ele roubava o rei; coisa antiga esta história de ladroagem na coisa pública. Foi por este motivo que tia Berenice veio morar com a irmã, minha tataravó Engracia, em nossa vila. Tatá Grácia colocou a mana para dormir no sótão, e assim a velhota ficou esquecida por muitos anos.

Esquecida é modo de dizer; na verdade virou a empregada da casa. Lavava, passava, cozinhava, limpava a cocheira, cerzia e costurava, e ainda fazia a feira semanal. Tudo isto à troca de comida; uma gata borralheira, a titia. O interessante foi que do caquinho em que estava, com tantos exercícios rejuvenesceu, transformando-se numa linda mulher. Sobreviveu à todos, e enterrou todos os descendentes do ex-alcaide Bartolomeu até a quinta geração.

Com o tempo tia Berenice foi confundida com um móvel da casa, os mais jovens nem sequer sabiam o seu nome. Ela estava presente em suas vidas desde o nascimento. Morreu sozinha no muquifo do sótão. Os netos dos netos de tatá Engrácia eram agora a elite da vilas, tinham raízes e bens, muitos escravos e muito ouro. Ergueram um casarão, e demoliram o lar ancestral.

Na demolição descobriram o sótão, e no sótão o esqueleto mumificado de tia Berenice. Foi um choque! Titia mantinha um diário com todos os podres da família. Família tradicional, ciosa do sobrenome, um terremoto não teria causado tanta destruição; puladas de cerca, bastardinhos, viadagem e muito mais. Maldito diário! Haviam feito várias cópias sem lerem o conteúdo das escritas, e bom nome foi parar na lama.

Tia Berenice deixou seu nome na história. Depois do terremoto a coisa serenou; meus parentes publicaram o diário, virou best-seller, mas foram expertos os sacanas, lá estava escrito: - Obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade é mera casualidade.

Coisa estranha! Tia Berê viveu esquecida, ignorada, explorada, mas quando notam nosso famoso sobrenome, sempre perguntam; - “Parente da famosa escritora?”, com muito orgulho dizemos que sim.

Gastão Ferreira/2016

Gastão Ferreira
Enviado por Gastão Ferreira em 04/08/2021
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