Becos e quintais
(Ouvindo o vento)
O menino-vento mora numa caverna na montanha; lá do alto avista o mar, as brancas areias de Maratayama, o imenso lagamar. Gosta de me contar histórias, coisas que ele viu, coisas que presenciou; ele não tem ideia de sua idade, ainda é um curumim. Existe desde sempre, e os indígenas o chamam de Ybytu, o vento.
Suas lembranças se misturam com as memorias do tempo; assistiu as grandes transformações geológicas da Terra, soprou sobre vulcões, rodopiou sobre maremotos e terremotos. Conheceu um réptil chamado dinossauro, mas me disse que um cometa exterminou todos eles. Naquela época Ybytu era apenas uma criança-vento, e o mundo selvagem e perigoso; seu território de atuação não passava do que hoje é conhecido como o município de Iguape, litoral sul do Estado de São Paulo.
Curumim curioso, Ybytu espiava à tudo e à todos; as antas, os tatetos, as onças e jaguatiricas, brincou com um animal de nome tamanduá, um bicho que comia formigas. Se espantou com a numerosa família dos macacos, e com as diversas espécies de aves que habitavam a região. Algumas aves eram migratórias, e contavam coisas incríveis do que viam em suas longas viagens. Todos os seres eram filhos de Tupã.
Os filhos de Tupã viviam felizes em Pindorama, muita fartura, alegria, nenhum problema com os vizinhos. Um dia Ybytu avistou um bicho estranho chegando do mar; andava sobre duas pernas, de pequena estatura, fez um ninho para morar. Se alimentava de grãos, frutos e peixes. Eram os formadores de sambaquis e isto aconteceu há dez mil anos.
Foram os primeiros bichos falantes que Ybytu conheceu, e o mais incrível! Eles cantavam. Nada sabiam de Tupã, o seu deus era um velho deus do mar. Fabricavam armas de pesca que chamavam de arpão; além das canoas feitas de um único tronco de árvore, trançavam esteiras, faziam fogo e enterravam seus mortos. Foram exterminados; muitas doenças, animais selvagens, cobras venenosas, intempéries. Os muitos ostreiros da região ainda lembram a sua história.
Os índios apareceram por aqui há uns dois mil anos; vieram de um lugar chamado Paraguai. Vinham caçar e pescar, conheciam Tupã. O homem branco chegou de muito longe, foi muito bem recepcionado. Bicho danado de complicado! Se achou dono de tudo, e foi se apossando do que não era seu; tentou escravizar os nativos.
Os selvagens reagiram e foram aprisionados; muito sangue correu. Os índios eram ciosos de sua liberdade; filhos das matas e dos rios, iguais passarinhos, não suportavam prisão. Os brancos não desistiram das más intenções e importaram gente de um outro mundo, só que de cor preta; eram os africanos. E, aqui foi o segundo maior porto negreiro do Brasil, nome com o qual os portugueses apelidaram Pindorama.
Uma vila surgiu, depois mudaram de lugar. No novo endereço virou comarca e depois cidade, esta onde estamos. Os visitantes anteriores adoravam Tupã, respeitavam as criaturas da floresta, não matavam sem motivo um ser vivo. Os brancos impuseram um novo deus, e ergueram um templo ao único filhos deste deus; os africanos cultuavam à Oxalá e à toda a sua numerosa família; Iemanjá, Ogum, Oxóssi, Iansã, Xangô, Ossanha, Omulú, Nanã, Exu e outros mais. Mesmo assim foram obrigados, abaixo de chicotadas, à levantarem o templo monumental ao deus dos seus carrascos.
Há muito tempo, um vento vindo do mar, descansou por estas bandas; ele contou que num país de nome Egito estavam erguendo pirâmides monumentais ao deuses de lá. Era um vento muito religioso; conheceu Osíris, Anúbis, Shiva, Cibele, Zeus, Posseidon e Jeová, pediu para que não nos intrometêssemos na briga dos deuses. Falou das muitas batalhas, da fome, do ódio, da destruição, e da grande ameaça chamada homem. O vento vindo do mar, partiu e nunca mais voltou.
A cidade prosperou, o homem branco criou raízes; casas de barro, ruas, praças, becos, chafarizes, muitos sobrados e todos com quintais. Havia um porto, arrozais, ouro nos rios; um dia abriram uma valeta para uma canoa passar. Uma vala unindo o grande rio ao lagamar. O bicho surucou! Tudo acabou. O rio assoreou o manguezal; adeus porto, adeus progresso. Os escravos foram vendidos para as Minas Gerais, e os poucos que ficaram, a Princesa os libertou; eram apenas dez os que restaram dos milhares que por aqui penaram.
Ybytu conheceu gente boa, gente má, gente à toa; gente generosa e gente asquerosa. Ybytu aprendeu que cada homem é diferente; todos eles nascem iguais, indefesos, chorões, inocentes. Depois crescem e se transformam, mas o vento também é assim; pode ser brisa, pode ser tufão. Pode afagar e pode destruir... Tudo é mistério nos sonhos de Tupã!
Ybytu, o menino-vento, se calou; se transformou num rodamoinho e foi espiar os navios pesqueiros, lá do alto da montanha. Quem sabe mais tarde me procure! Pois sei que tem muito mais à me contar.
Gastão Ferreira/2016