O padre que virou visagem
Vestia uma batina preta, tinha as mãos descarnadas, a cabeça era uma caveira; Dito Cheiroso foi um dos poucos que o viu cara a cara, e espalhou a notícia de que a visagem era de um padre. A assombração surgiu num repente quase na esquina da rua Capitão Dias com a rua Major Rebello, encarou Ditinho com suas orbitas vazias, e o fedor de carne podre atiçou a matilha de cães vadios que surgiram do nada.
Dito Cheiroso não tomava banho, eis o porquê do apelido, emborcava umas pingas, era um homem trabalhador e tinha a fama de honesto; aliás, uma coisa não tem nada à ver com a outra. Após o susto com a visagem parou de beber, passou a tomar dois banhos por dia, e se tornou um servo do Senhor, se mudou para um sitio, e nunca mais veio à cidade.
Estávamos na década de 50; na Princesa a luz era desligada as 22 horas, todas as ruas de areia, muitos casarões abandonados. A cidade com poucos habitantes, ainda não tínhamos a Biguá/Iguape, a estrada para Pariquera era uma trilha esburacada, uma pequena balsa fazia a travessia do Valo Grande, o bairro do Rocio era um quase deserto.
A lenda do padre que virou assombração era antiga, coisa do século XVII; envolvia uma moça da elite, paixão, ciúmes doentios, fofocas, sacanagem com escravas, roubo de ouro, politicagem, vingança e morte. O padre foi enforcado? Alguns afirmam que ele se matou, outros que o prometido da moça matou o sacerdote e depois o pendurou para aparentar suicídio, o mistério jamais foi solucionado, e o padre começou a aparecer naquela afamada esquina, e quem morava no casarão da esquina? A musa, a paixão doentia do padre...
A visagem costumava aparecer para os moços namoradores que não respeitavam as donzelas, para os homens casados que traiam as esposas, para os tarados, e raramente para bêbados ou crianças, mas somente os bebuns e as crianças contavam o que viam, pois todos sabiam que o padre tinha as suas preferencias e gostava de assombrar pecadores, e assemelhados. Por muitos e muitos anos, a visagem do padre infernizou as noitadas de boêmios e amantes; a última pessoa a sentir a presença do padre que virou visagem foi o menino Hélio, mas já faz um bom tempo.
Estamos na metade do século XX, o molecote Hélio e seu irmão Mordocheu foram assistir a um bang-bang no cinema de Seu Emílio Cebola, na saída acabaram se separando e Hélio veio sozinho para casa; Hélio morava na rua Capitão Dias, e para chegar em casa teria que passar pela esquina assombrada. Ele ficou um bom tempo sentado na outra esquina, esperando o irmão, as 22 horas a luz foi desligada e ele foi forçado a continuar o percurso para o lar; trêmulo, apavorado, se cagando de medo, se aproximou da esquina amaldiçoada; os cachorros apareceram, e Hélio se escafedeu pela rua Capitão Dias que era pura areia. Com os olhos cheios de lágrimas se encostou num pé de camêna, a velha árvore estava coberta de barba de árvore, e ele pensou ser as mãos de vento do padre; o guri partiu feito corisco e só parou dentro de sua casa, que estava próxima. Um suor frio escoria por todo o seu corpo, um fedor se espalhava ao seu redor; o menino tentou se acalmar, sem fazer barulho pegou uma calça limpa e foi ao banheiro no pátio da casa, precisava tomar um bom banho.
Dizem as más línguas que o padre que virou visagem participou do Banho da Dorothéia neste carnaval/2019; ninguém desconfiou da estranha fantasia e ele se divertiu adoidado. Já não se crê em assombração como antigamente; que falta faz uma Mula Sem Cabeça, um Lobisomem, um filhote de Saci nas noites iguapense.
Gastão Ferreira/2019