A visagem de Juruvaúva
Iguape, litoral sul do Estado de São Paulo, uma das cidades mais antigas do Brasil, se aproximando dos cinco séculos de existência. Situada no coração do Vale do Ribeira, entre a densa Mata Atlântica, e dezenas de riachos de águas cristalinas que desaguam no majestoso Rio Ribeira. Escondida entre altas montanhas e banhada pelo Oceano Atlântico; Iguape que possuiu um dos maiores porto negreiro do país, foi pioneira na exploração do ouro de aluvião, cidade dos coronéis, majores, escravos, senhores de engenho e boitatá.
Iguape aonde por vezes o tempo para e relembra o passado de tantas glorias, lutas, piratarias, causos de arrepiar os cabelos; procissão dos mortos vivos, carruagens fantasmas, lobisomens famintos e apaixonados, mula sem cabeça, negrinho d’água, corpo seco, bruxas e feiticeiras, encantadas iaras e sereias, cidade das serestas e saraus, das donzelas raptadas por piratas, e das muitas histórias de pescador.
Ali, onde o Mar Pequeno faz uma grande curva, não muito distante da Ilha da Bandeira, entre o balneário Juruvaúva e Ubatuba, existe uma casa abandonada; casa antiga, de grossas paredes de alvenaria, indicando que quem a construiu, investiu na obra e a fez com bom gosto. A habitação está localizada a margem do Mar de Dentro, quase no final de Ilha Comprida, onde a água salgada do manguezal forma um pequeno e aprazível remanso, algumas árvores frondosas escondem a velha casa de quem passa pelo lagamar; esta casa tem uma história.
Há poucas semanas um ciclone extratropical atingiu a região, a cidade de Cananéia, e a parte sul de Ilha Comprida foram os locais que mais sofreram com a passagem do vendaval; o tufão ocorreu na madrugada e encontrou o turista e pescador amador, seu Heitor e o menino Robson, seu neto, dentro de uma lancha à caminho da Ilha do Cardoso.
Em meio a chuva de granizo, raios, coriscos, relâmpagos e fortes rajadas de vento, Seu Heitor perdeu o controle da lancha, o garoto Robson bateu com a cabeça, e gritava de dor; Seu Heitor permaneceu firme no leme, e três horas após o início da tormenta, tudo serenou; a lancha estava frente à uma casa de grossas paredes brancas, no balneário Ubatuba, em Ilha Comprida; a casa de nossa história.
Seu Heitor buscou socorro para o neto Robson, uma senhora morena, aparentando idade avançada, foi quem atendeu aos dois; extremamente atenciosa, chegou a preparar um gostoso caldo de cabeça de bagre para fortalecer a criança, e ao senhor Heitor ofereceu uma tainha na folha da bananeira, acompanhada de banana da terra. Disse que o seu nome era Filomena, e pediu desculpas pelo pouco que podia ofertar, mas era o que de melhor havia na casa, seu marido, o Antunes e o filho Jairzinho, ainda não voltaram da visita aos cercos de tainhas e robalos no Mar Pequeno.
Nem bem o sol raiou e Seu Heitor retornou a lancha de pesca, agradeceu à acolhida e como nada tinha para retribuir, pois durante a tempestade, todos os mantimentos foram parar fora da lancha, apenas disse; - “Que o Bom Jesus, olhe sempre pela senhora! Muito obrigado.”, a mulher sorriu encabulada e entregou um embrulho com as sobras da tainha recheada, desejando uma boa viagem aos dois.
Seu Heitor parou a lancha no balneário Juruvaúva e foi até a vendinha de Seu Honório; ao comentar com o comerciante sobre o terrível ciclone e a sorte que tivera de encontrar uma alma caridosa, seu Honório ficou espantado; - “O senhor está falando de uma casa meio tapera, a uns cinco quilômetros daqui?”
- “Sim, a casa do Seu Antunes e do Jair.” Confirmou Seu Heitor.
- “Desculpe, moço, mas Seu Antunes foi colega de meu falecido pai, e ele e o filho Jair morreram durante uma tempestade há mais de cinquenta anos, a esposa, nhá Filó ficou definhando na casa, esperando por eles, morreu acreditando que um dia eles voltariam para junto dela.”
- “Acho que o senhor quer me assustar; - Robson! Traga a sacola onde coloquei a tainha que ganhei da mulher que nos socorreu...”
Seu Heitor, homem da cidade grande, estudado, formado em muitas coisas, desmaiou bem na frente do velho Honório; ao abrir a sacola onde estavam os restos da tainha assada, que ele viu a mulher embrulhar, havia apenas ossos humanos gastos pelo tempo, e apresentando marcas recentes de pequenas mordidas.
Ah, estas histórias de pescador! Ah, estas visagens que nos visitam...
Gastão Ferreira/2019