Histórias não contadas
Neste mundo tudo morre, tudo passa, e tudo viaja para o esquecimento; são os contadores de causos, os escritores, os menestréis e poetas que levam os personagens para a eternidade; se não fosse Homero jamais saberíamos de Aquiles, o maior de todos os guerreiros, ou de Heitor, o domador de cavalos, príncipe de Tróia. Todas as histórias podem ser contadas, até mesmo as histórias proibidas; na Princesa do Litoral tentaram por muitos e muitos anos esconder o fato de que o coronel Isidoro Paixão, depois de defunto, continuou tomando conta do seu ouro e de suas propriedades.
Dez anos após a sua morte, numa noite de lua cheia, a escrava Emengarda, a negrinha encarregada de despejar os urinóis pela janela lateral do palacete, segundo contou aos prantos, viu o coronel na calçada; - “Juro pelo Bom Jesus! Era ele sinhá, de susto deixei cair o penico bem em cima da figura do coroné, e ele me oiô de cara zangada, os zóio vermeio feito dois tição em brasa.”, “Garda, Garda, te esconjuro excomungada! Se contar para alguém te vendo a troco de manjuba ao primeiro mascate que aparecer na cidade; boca de siri!”
Quando a donzela Lorelaine, veio do sitio para passar a Festa do Bom Jesus, isto no ano de 1875, no palacete de seu padrinho já falecido, conheceu o mancebo Eustáquio da Conceição Negrão Silva. Rapaz bem apessoado, metido a cantador, seresteiro e mulherengo; para a mocinha, menina inexperiente, bastou três piscadas de olhos do jovem e estava perdida de amores.
A viúva do coronel, madrinha de Lorelaine, sabia da má fama do moço Eustáquio, e proibiu o namoro; a garota estava pronta para fugir, e tentou comprar a ajuda da escrava Emengarda. A serva não sabia o que fazer, se ajudasse a sinhazinha, e a sinhá velha descobrisse, com certeza seria açoitada até a morte. Se não ajudasse, pior ainda, sinhazinha podia pedir a escrava de presente e lavá-la para a zona rural, e por lá o bicho pegava.
Era caso de vida ou morte para Emengarda, e ela perdeu o medo e recorreu ao fantasma do coronel, pois em todas as luas cheias ela notava a visagem, algumas vezes até mesmo dentro de casa; prometeu a assombração que nunca mais despejaria os penicos pelas janelas do palacete. Uma promessa boba, mas a escrava sabia da brabeza do coronel sempre que era atingido com o conteúdo do vaso noturno.
Na noite da fuga, todos dormiam no palacete, menos Lorelaine e Emengarda, perto da meia-noite a donzela saiu do quarto sorrateiramente; portava uma sacola com algumas mudas de roupa, jogou uma escada de tecido pela sacada e sorriu para Eustáquio que estava na calçada, só na espera; na metade da descida da escada, Lorelaine ouviu um grito apavorante, e viu a figura do padrinho já falecido baixar a bengala na cabeça de Eustáquio, muda de susto e medo, desmaiou e caiu da escada... Com a gritaria, na calada da noite, a vizinhança ocorreu e a rapariga ficou em maus lençóis.
Rico não é fácil, e milionário é pior ainda; Lorelaine comprou a peso de ouro o silêncio de Emengarda, aliás deu alforria a negra após a escrava jurar que um homem mascarado tentou raptar a sinhazinha para pedir um futuro resgate, mas na hora do vamos ver, um vulto surgiu na rua e impediu a consumação do plano diabólico do desconhecido, que escafedeu-se na escuridão. Eustáquio embarcou no primeiro navio para Santos e nunca mais voltou à Princesa.
Por muitos anos o quase rapto de Lorelaine fez parte das lendas urbanas, as lendas contavam da valente donzela que lutou bravamente contra um pirata que queria raptá-la, um exemplo para as meninas mimadas e sonhadoras que ficavam nas janelas, suspirando por um príncipe. A história não contada foi a presença do coronel Isidoro Paixão, a visagem que até os dias atuais vez por outra aparece numa das janelas do velho palacete.
Gastão Ferreira/2019