Nossa Mula-sem-cabeça

O equus ferus caballus, é um mamífero herbívoro da ordem dos ungulados, são parentes longínquos das antas, ou tapires. Os antepassados do cavalo, são originários do norte da América, mas extinguiram-se aí por volta do Pleistoceno, há cerca de cento e vinte mil anos; migraram para a Ásia e Europa em épocas pré-histórica. Foram trazidos para o Brasil logo após o descobrimento em três levas, a primeira em 1534 para a Capitania de São Vicente, a segunda em 1535 para Pernambuco e a terceira em 1551 por Tomé de Souza que importou de Cabo Verde, bois, vacas, cinco cavalos e dois burros.

Iguape foi fundada em 1538, provavelmente por esta época já havia cavalos em nossa região, pois o comércio e as escaramuças com São Vicente fazem parte da história pós-descobrimento; sabe-se que em 1550 o carro de boi era uma novidade e fazia parte do incrível progresso das incipientes freguesias litorâneas.

A mula é um equídeo não fértil, filha de um jumento, com uma égua, a fêmea do cavalo. É um animal de carga, dócil, pacifico, auxilia o homem, e serviu e serve como montaria a milênios. No Brasil, e somente aqui, algo de muito estranho acontece com as mulas, algo terrível e que não tem igual em nenhum lugar do mundo; elas enlouquecem e viram mulas-sem-cabeça!

Segundo o manuscrito apócrifo “ O livro dos Piratas da Barra”, a primeira mula-sem-cabeça de que se tem notícia aqui na nossa região, apareceu do nada, aí pelo Ano da Graça do Senhor de 1615, assustou os filhos de Deus, cuspia fogo pelo pescoço, soltava gritos horripilantes, e assim como surgia, desaparecia em disparada mata a dentro. No início foi apenas uma a apavorar a Paroquia das Neves, mas com o passar do tempo, e o aumento da população, a vinda de missionários, padres, vigários, curas, clérigos, párocos, eclesiásticos houve uma epidemia de mulas-sem-cabeça na região, e a conclusão foi de que o mistério tinha algo a ver com os padres.

O mistério foi solucionado a contento, aliás nem era mistério, mas simples sem-vergonhice, putaria, sacanagem; quando uma donzela perdia a donzelice com um padre, na primeira lua cheia após os atos libidinosos a moça se transformava em uma mula-sem-cabeça, e saía a galopar pelas trilhas, estradas e beira mar feita uma doida. Corria até esgotar o erotismo reprimido, e então voltava a forma humana. Era o auto castigo por se ter entregue de corpo e alma a um homem santo, um servo do Senhor, alguém que fizera um voto de castidade, e que a maléfica filha de Eva enfeitiçara; assim se dizia na época, o padre nunca era apontado como o tarado, o assediador de beatas e congêneres.

Durante séculos Iguape teve suas mulas-sem-cabeça, a maioria delas anônimas, pois ninguém ficou sabendo o nome das pecadoras, se bem que todos tinham a sua desconfiança. Tivemos mulas de todas as faixas etárias, e também alguns burros-sem-cabeça, sinal de que a tara dos religiosos não ligava a mínima para a idade ou sexo de suas vítimas; muitas mulas-sem-cabeça pereceram afogadas no Valo Grande, se atiravam na água em forma de mula, mas ao morrer voltavam a forma humana; chocante!

Há uns quarenta anos tivemos uma breve epidemia de mulas-sem-cabeça, mas alguém foi transferido de paróquia e o surto desapareceu; na atualidade, com a mudança nos costumes, a aceitação da diversidade, as paradas gays, o empodeiramento feminino, as sem-cabeças desapareceram, agora são mulas-sem-noção, conhecidas como marmitas de padre, todas tentando os castos sacerdotes, todas afim de ganhar um dinheirinho extra; não se fazem mais mulas-sem-cabeça como antigamente, que o diga, Maria da Lua, nossa última mula-sem-cabeça.

Gastão Ferreira/2019

Gastão Ferreira
Enviado por Gastão Ferreira em 30/07/2021
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