Maria da Lua, a mulça-sem-cabeça
Conta a lenda urbana que Maria da Lua morava num rancho de sapé para as bandas da Ponte do Mathias; morena, esbelta, corpo perfeito, de riso fácil, gentil, generosa, caiçara da gema. Órfã de um pequeno sitiante, criada pela mãe, Dona Minervina Santos, mulher que desde a infância tinha estranhas crises de múltiplas identidades; a mãe simplesmente se transformava em outra pessoa, inclusive com nome e sobrenome. Todos afirmavam que Dona Vina era aluada, eis o porquê do apelido da bela Maria, da Lua por parte da genitora.
A beleza exótica de Maria da Lua chamava a atenção; foi assediada por muitos romeiros. Os caminhantes eram pessoas que vinham de longe pagar promessa no santuário da cidade, e que paravam no casebre para pedir água. Dona Vina, a louca, botava todos para correr, até o dia em que o jovem padre Edenardo bateu a sua porta.
Padre Nardo era um poeta, sua musa era Nossa Senhora, mas assim que botou os olhos em Maria da Lua, a santa passou a ter o rosto de da Lua, e o safadinho fez mil versinhos para a inspiradora de seus novos poemas, antes tão castos e agora tão eróticos.
Padre Edenardo engambelou Dona Minervina, dizia acreditar piamente nas mentiras que cada personagem incorporada por Dona Vina lhe confidenciava em confissão, e foi assim que realizou seus desejos carnais; possuir a ingênua Maria da Lua.
Ledo engano! Maria da Lua há muito tempo perdera a ingenuidade e outras coisas, e todos os romeiros sabiam disso, mas quem se apaixonou de verdade foi o padre, e da Lua soube tirar partido da situação; muita prataria e objetos de ouro desapareceram misteriosamente das velhas igrejas da cidade. O padre Euzébio desconfiou de padre Edenardo e acabou descobrindo o romance pecaminoso; estava se preparando para contar ao senhor Bispo quando conheceu pessoalmente Maria da Lua, e foi paixão fulminante, arrebatadora, mortal, e só não largou a batina porque não tinha como sobreviver fora da vida religiosa, e também porque da Lua rogou que não o fizesse, pois caso abandonasse a batina, ela fatalmente se transformaria numa mula-sem-cabeça.
Quem contou sobre o enrosco de padre Euzébio com Maria da Lua, foi a menina Shirley Campos, uma das personagens vividas por Dona Minervina; a coisa foi tão feia que padre Nardo tirou a própria vida, ele se enforcou junto ao muro de pedra existente nas proximidades da ponte do Mathias, e virou visagem por muito e muito tempo.
Quando toda essa sórdida história veio à tona, padre Euzébio se jogou do campanário, e nesta noite fatídica, Maria da Lua se transformou pela primeira vez em uma mula-sem-cabeça; correu soltando fogo pelo pescoço desde a ponte do Mathias até o centro da cidade. Relinchou sua dor, mostrou o seu desespero em torno da Praça da Matriz, e partiu em disparada para o seu rancho.
Foram treze luas cheias, foram treze vezes em que a mula-sem-cabeça assustou os pacatos moradores da cidade. Na época em que tais fatos ocorreram ninguém ficou sabendo da identidade da mula. Quando o jovem e fogoso padre Damião chegou à cidade, a mula parou de assombrar os viventes, Maria da Lua voltou a sorrir e Dona Minervina se apaixonou por um lobisomem, mas já estamos em outra história...
Gastão Ferreira/2019