Um estranho no baile
Baile de viola é algo inesquecível; quase ninguém entende as letras das músicas, mas todos cantam. No início do século XX, fora as serestas, os saraus, os bailados orquestrados com direito ao acompanhamento de violinos e pianos, os arrasta-pés ao som da viola caiçara era o divertimento do povão.
Seu Dito Bingo, hoje com seus cento e poucos anos, foi um exímio violeiro na juventude. O último baile em que tocou e cantou ainda está presente em sua memória; foi para os lados do Jairê.
Benedicto era um caiçara bem apessoado, um tanto tímido, um tanto calado; nada que três doses de cataia não solucionassem! Rapazola sempre no cio, cortejado pelas meninas más das famílias boas, convidado especial para as muitas cantorias realizadas nos bairros rurais do município.
Naquela noite de Julho de 1930, foi à tarde, de canoa, até o bairro do Jairê. Naquele tempo tudo começava mais cedo e às nove horas da noite o fandango estava pela metade; a cachaça rolava a vontade pelos compridos bancos de madeira ao redor do salão iluminado por lampiões a querosene.
Um moço aparentando vinte e poucos anos, trajando roupas escuras e negras botas de cano alto, adentrou o salão; bonito, simpático, silencioso... Mal entrou no recinto e tirou para a dança Maria Pinguim, assim apelidada devido à baixa estatura. A próxima contradança foi com Ditinha Sabugo e a cada nova execução dos violeiros, trocava de parceira... Como bailava bem! As mocinhas suspiravam, lançavam olhares, sorrisos, caras e bocas, mas o rapaz não correspondia e nem respondia as poucas e tímidas perguntas mal balbuciadas que as mais sapecas lhe dirigiam ao dançarem.
Pouco antes do término do arrasta-pé, o desconhecido pediu para tocar e cantar; cantou e encantou! Pela primeira vez todos entenderam claramente as letras das músicas... Eram composições que falavam de ciúmes, desavenças amorosas, saudades fatais, nostalgia... Caso mudasse o ritmo e o instrumento musical, passariam por tangos argentinos; daqueles que enchem os olhos de lágrimas das meninas sonhadoras e sofredoras.
Meia-noite em ponto ele parou de tocar e cantar; soltou uma gargalhada e desapareceu em pleno ar em meio a uma densa fumaça cheirando a enxofre e uma nuvem negra saiu lentamente pela janela do salão, não sem antes acariciar um a um os participantes do baile.
Dito Bingo quase desmaiou de susto, nas costas de sua viola ficou gravada uma negra marca; a mão do moço dançarino e cantador. Foi o último baile em que Dito Bingo mostrou sua arte; o baile em que o diabo dançou, cantou e encantou.
Gastão Ferreira/2014