Os lábios de Catarina

Catarina era uma moça de dezesseis anos. Filha de dona Almerinda e do senhor Onofre Pedrosa, era a mais velha dos cinco filhos. Tinha sonhos como todos os adolescentes de sua idade, mas havia um que não tinha coragem de realizar: usar batom vermelho.

A família de Catarina tinha condições financeiras boas. Donos de uma grande empresa de produtos de limpeza na cidade de Dias D’ávila, Bahia, tinham mais duas filiais em outras cidades baianas, por isso, tanto Catarina quanto seus irmãos puderam estudar em escola particular desde pequenos. Nada faltava a eles. Os caçulas, que eram gêmeos, de três anos de idade, Victor de sete anos e Louise de doze anos estudavam na mesma escola. Já Catarina, como era do Ensino Médio, estudava em outra Instituição de ensino.

Dona Almerinda, mãe de Catarina, dizia que estudar em escola particular era se proteger dos racistas que ocupavam outros espaços da sociedade, mas ela estava enganada. Muitas vezes, Catarina sofria discriminação no momento das atividades em grupo ou ainda durante o intervalo, longe dos olhares dos seus professores. Longe da proteção dos pais que precisaram trabalhar muito para terem algum prestígio social na sociedade. Não que eles ainda não passassem por algum tipo de discriminação por serem negros, mas em uma sociedade onde o poder aquisitivo está acima, muitas vezes, dos valores morais e éticos, o racismo aparece, muitas vezes, velado.

As colegas da escola de Catarina usavam maquiagem todos os dias, batons de todas as cores e sombras iluminadas. Gostavam de exibir as últimas modas de um mundo feminino. Catarina não. Tinha vergonha de usar a cor de que mais gostava nos lábios, por isso preferia ir à escola sem nenhuma maquiagem. Às vezes, um leve rímel marcava a vivacidade do seu olhar. No entanto, o batom vermelho estava sempre no bolso de sua calça jeans esperando o momento certo para pintar aqueles lindos lábios carnudos. Ela sabia que em algum momento de sua vida isso iria acontecer, mas, emocionalmente, não se sentia preparada para expor sua verdadeira identidade. Usava máscara. Uma máscara invisível que só ela sabia conseguia ver.

Sua mãe até a questionava por que ela não ia à escola de maquiagem assim como as outras garotas da sua idade, afinal, era algo muito comum nessa fase de descobertas, que era a adolescência. Como resposta, Catarina dizia que não gostava de se maquiar durante o dia. Era mais uma das mentiras que ela, forçadamente por um sentimento de inferioridade, dizia à mãe e sentia um nó na garganta a abafar as lágrimas. Ela não queria deixar a mãe triste e preocupada nem queria mudar de colégio, por isso escondia as piadas que ouvia na escola por parte de algumas meninas.

Certa manhã, durante uma aula de História, a professora passou um documentário sobre o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. De repente, no vídeo, apareceu a esposa dele, Michelle Obama, usando um forte batom vermelho, da cor de sangue. O sangue da vida, da luta e da resistência. A mesma cor dos batons guardados na gaveta de sua cômoda. A aula tinha como foco principal a democracia e muitas questões foram levantadas sobre o que é ser democrático e o que um país ganha quando todos participam das tomadas de decisão. Catarina ficou ali muito surpresa em ver a ex-primeira dama rompendo o uso do tradicional batom nude, pois ela sempre aparecia bem discreta nas redes sociais.

Um mundo de pensamentos e sentimentos se misturaram dentro de Catarina. Se ela usa, vou usar também! Pensou a garota esboçando um leve sorriso. Era como se uma força emanasse de suas veias e tomasse conta do seu corpo. Era momento certo de agir a favor dela mesma. Catarina mexia o corpo inquieta. Os pés balançavam revelando que algo a estava incomodando. Queria ser livre, livre das barreiras invisíveis e perigosas que a afastavam dela mesma. Barreiras que foram construídas ao longo da história da humanidade e que precisavam ser derrubadas.

A colega que estava sentada atrás dela percebeu a mudança de humor de Catarina e falou baixinho ao seu ouvido:

__ O que está acontecendo com você, Catarina? Quer um namoradinho igual ao Obama é? _ E dando um leve tapa nas costas de Catarina que sentava à sua frente, voltou para seu lugar.

Não! Não queria um namoradinho igual ao ex-presidente dos Estados Unidos. Queria o sorriso sem temor igual ao daquela mulher do vídeo. Queria a liberdade exposta daquele rosto feminino que revelava autoestima e poder. Queria.

A aula foi muito interativa. Todos faziam perguntas sobre o primeiro presidente negro dos Estados Unidos à professora que tentava responder a todos calmamente. Mas o olhar de Catarina estava em Michelle e na sua performance de mulher empoderada e engajada politicamente.

Catarina não respondeu nada à colega que ainda falava algo atrás dela, mas continuou sorrindo, disfarçando o grande entusiasmo que a ex-primeira dama dos Estados Unidos transmitiu para ela. Sim, ela estava incomodada, mas era um incômodo bom. E pensou: O que estou fazendo comigo mesma? Quero a minha identidade! Quero ser eu... fazer o que gosto, vestir o que tenho vontade. Usar as cores que desejo! Chega de seguir os ditames sociais que me invalidam como ser... como mulher! Quero pertencer a um universo que acredito e que me faz feliz.

Passou a mão no bolso da calça. Sentiu o batom. A mão ficou por algum instante ali. Era como se ela estivesse buscando a força que precisava para tirá-lo e usá-lo como deveria ser. Fechou os olhos e pensou no sorriso da mulher do vídeo.

Assim que a aula acabou, ela pediu licença à professora que ainda não havia saído da sala, pois um grupo de alunos estava tirando algumas dúvidas sobre racismo e discutindo questões sobre a violência sofrida por George Floyd, um negro americano que foi brutalmente assassinado por policiais brancos.

No banheiro, Catarina olhou-se fixamente no grande espelho à sua frente. Achou o cabelo dela muito parecido com o de Michelle Obama. O rosto tinha o mesmo brilho, os mesmos traços. Os olhos negros, vivos e esperançosos como os da moça do vídeo. A boca... Não! A boca não tinha o mesmo batom cor de sangue. Abriu um sorriso. Passou os dedos lentamente nos lábios como se tivesse desenhando uma outra boca. O sorriso da menina do espelho foi recíproco. A felicidade de ser autoconfiante encheu seu peito de poder.

Tirou o objeto do bolso. Abriu-o e colocou a tampa em cima do mármore escuro da pia. Lentamente, foi pincelando, com o batom nunca usado, o lábio inferior, depois o superior. Várias vezes passou o batom nos lábios. A garota do espelho ainda estava sorrindo e ao abrir a boca, sussurrou a ela:

__Está na hora de mostrar ao mundo quem é você, Catarina Pedrosa. Seja como Michelle. Seja forte... Empodere-se!

Ficou ali, na frente do espelho, por mais alguns minutos. Ouviu a sirene do intervalo tocar. Ouviu as vozes nos corredores. Estava na hora!

Nos corredores de volta à sala de aula, Catarina se sentiu a mais poderosa de todas as garotas daquela escola. Sentiu-se livre e pronta para enfrentar os olhares, risos e até palavras de ódio. Abriu seu mais lindo sorriso. Tinha descoberto que o poder vinha de um simples e barato objeto. Vinha de um batom vermelho.