Toque-toque na calçada
Conta a lenda urbana que na virada do século XIX, um fato incomum ocorreu no Centro Histórico da cidade de Iguape; por esta época ainda não havia rede elétrica na Princesa do Litoral, apenas alguns lampiões no entorno da Praça da Matriz. As pessoas dormiam cedo, e pouquíssimas se arriscavam sair à noite, pois a escuridão era o esconderijo das almas penadas, dos filhos das trevas, e a fonte de todo o mal.
Marco Antônio tinha o sono leve, despertava ao menor zunzunzum. Naquela noite acordou com o ruído de um toque-toque na rua; foi espiar e pela primeira vez notou o vulto de uma jovem andando rente à calçada, pelo som parecia que a moça usava sandálias de prata. A rapariga fez a volta na praça, e desapareceu no beco que levava ao porto. Quem seria a valente donzela que não temia a negritude das sombras?
Quando Marcos comentou sobre a visagem, descobriu que não era o único à vê-la; alguns rapazes há muito conheciam as andanças noturnas da estranha moça. A história se espalhou, e os jovens tentaram desvendar o mistério.
Nicolau, Eduardo, Anselmo, Marcos, e Tonho ficaram de tocaia, na espera de ouvir o toque-toque, na calçada. Realmente, tarde da noite, a moça apareceu, deu a volta na praça, e desapareceu no beco do porto. Combinaram que no próximo encontro com a rapariga, mal ela surgisse na ponta da praça, Anselmo se posicionaria no final da rua do porto, enquanto Nicolau, Eduardo e Tonho a seguiriam silenciosamente pela calçada.
Da janela da casa de Marcos se podia ver toda a praça; quando a moça apareceu, vinda da direção do Largo do Rosário, Anselmo desceu a rua do porto, Nicolau, e Tonho ficaram na esquina da farmácia Colombo, e Eduardo na soleira da porta da Igreja Matriz, Marcos permaneceu escondido por detrás da janela, seguindo passo a passo a movimentação dos amigos, e da intrigante garota.
Vestido branco quase encobrindo os tornozelos, cabelos negros, pele alva, corpo escultural... Olhos vermelhos... Olhos vermelhos? Marcos se arrepiou por inteiro. Parece que a moça sabia que ele estava espreitando por detrás da cortina, pois ela fez questão de parar frente à janela, e fitar o espião bem nos olhos.
Marcos entrou em choque; apavorado com os olhos vermelhos da rapariga, não conseguiu avisar os amigos que a guria era uma visagem, um ser da escuridão, uma morta-viva, algo saído do coração das trevas. Aterrorizado ouviu os gritos de Nicolau, Eduardo e Tonho. Escutou o pedido de socorro de Anselmo... Depois o silencio, e um toque-toque na calçada; a visagem, passava agora invisível, e onde a sola da sua sandália tocava, uma mancha vermelha se formava, uma marca vermelha cor de sangue, do sangue dos amigos de Marcos, dos amigos que jamais voltaram.
Muitos jovens desapareceram, na cidade, sem deixar vestígios; alguns partiram em anônimos navios, outros seguiram o toque-toque de uma sandália de prata e se perderam na escuridão... Alguns rapazes desaparecem todos os anos, ninguém sabe para aonde, ninguém viu.
Gastão Ferreira/2018