As gêmeas

Quando no final do século XIX uma epidemia do cólera devastou a Princesa do Litoral, praticamente todas as famílias perderam entes queridos; no Funil de Cima, na rua das Neves, a mortandade foi terrível. Dizem que a morte iguala a todos, pois todos vão para sete palmos de fundura e ninguém volta para reclamar do que deixou na vida física.

Conta a lenda urbana que a coisa não é bem assim, que o diga o moço Dioguinho, rapaz com ares de poeta e seresteiro, um violeiro amado por dezenas de musas, e dentre elas as gêmeas Marilda e Cacilda. As irmãs ficavam dia e noite na janela, na verdade por detrás da cortina, espiando a rua para ver o mancebo passar rumo ao trabalho diário.

Desde a ocasião em que o senhor vigário chamou a atenção das duas meninas, durante uma missa, a cidade inteira soube da paixonite das garotas pelo jovem mancebo; Cacilda não tirava os olhos do rapaz, e quando Marilda notou que era para Dioguinho que a irmã lançava ternos olhares, também começou a fazer caras e bocas para o moço, e o padre percebeu e a coisa ficou feia, o sacerdote mandou que ambas se ajoelhassem por três horas sobre grãos de milhos, e como penitencia extra, rezaram duas mil ave-marias.

Numa época em que nem haviam inventado a palavra assédio sexual, Diogo já sofria do dito cujo; ele trabalhava numa loja de secos e molhados, e o pai das gêmeas tinha uma conta por lá, e todo o dia elas teimavam em perturbar a vida do moço. Marilda inventou o truque de experimentar sapatos, um dos mais terríveis que existe, pois faz o atendente baixar todos os sapatos da prateleira e acaba não se escolhendo nenhum. Cacilda não copiou a irmã, mas toda a tarde pedia para Diogo mostrar as dezenas de fardos de tecidos, olhava, passava a mão, alisava, piscava para o jovem, lambia os lábios e no final não levava nenhum pano ou retalho de fazenda.

Estava a vida neste chove e não molha quando o surto do cólera se abateu sobre a cidade, e por infelicidade as duas jovens pereceram, e foram enterradas no cemitério da cidade, num caixão coberto por cal virgem, afim de evitar contagiar a comunidade.

O mundo continuou girando, festas do Bom Jesus se sucedendo, carnaval, pescarias e praias; Diogo estava para casar com Suzana, e foram levar o convite do casamento para um parente que morava num sitio onde é hoje o fundão do Rocio, atravessaram o Valo Grande de canoa e na volta, já tarde da noite, passaram frente ao cemitério.

Foi um Deus nos acuda! Quando Suzana pegou a mão do noivo, duas moças, uma vestida de branco e outra de preto, que não se sabe como, estavam sentadas sobre o muro do cemitério gritaram ao mesmo tempo; - “Solta a mão dele, piranha! ”

Suzana desmaiou, pois naquele tempo as mocinhas eram extremamente sensíveis e desmaiavam fáceis; as duas visagens pularam sobre o mancebo Diogo e tentavam beijá-lo inutilmente, coisa feia de se ver! A muito custo, o jovem conseguiu carregar a noiva até em casa, ela desistiu do casamento, pois tinha a certeza de que as almas penadas de Marilda e Cacilda jamais lhe dariam sossego, e com Diogo nunca seria feliz.

Diogo foi de navio para Santos, alguns anos depois casou com Belmira e teve um filho, Diego, a cara do pai... Vinte anos depois, Diego veio visitar os avós e a noitinha passou frente ao campo-santo, e levou o maior susto que um cristão pode levar na vida; duas moças, uma de branco e outra de preto, sentadas sobre o muro do cemitério, gritaram ao vê-lo passar; - “Oi, amor! Você voltou.... Com qual de nós duas vai casar? ”... Diego saiu em disparada, e nunca mais veio visitar os parentes na Princesa do Litoral.

Gastão Ferreira/2019

Gastão Ferreira
Enviado por Gastão Ferreira em 22/07/2021
Código do texto: T7304724
Classificação de conteúdo: seguro