O Solar dos Engenhos
Marcelo e Patrícia casaram no dia dez de julho, e seguiram em lua de mel para a cidade praiana de Iguape, litoral sul do Estado de São Paulo. Doze horas na estrada, cansados, tempo chuvoso, começo da noite, e o carro sofreu uma pane; faltavam exatamente sete quilômetros para a entrada da cidade, e quis o destino que o carro pifasse próximo a uma velha pousada.
A construção era antiga, e foram recepcionados por uma jovem com vestes do século XVIII, ela se expressava de forma estranha, vocábulos fora de uso, num português arcaico; o casal pensou que a pousada era um hotel temático de beira de estrada, e não deu muita importância ao comportamento da rapariga.
No quarto, o que chamou a atenção foi a falta de luz elétrica, algumas lamparinas pendiam da parede, e no banheiro uma tina de água fumegante convidava a um banho reparador.
Três batidas na porta e uma voz anuncia; - “Sinhá Therência mandô eu trazê para ocêis uma merenda, num é bão dormí de barriga vazia...”, Marcelo abre a porta do quarto e dá de frente com uma mulher negra, trajando roupas de escrava. Pega a bandeja com o lanche, e a empregada diz; - “Sinhozinho, se sinta em casa! Num instranha a gritaria da noite, hoje capturaro o negro Juvenar, escravo fujão.... Vai sê açoitado mais tarde; num saiam do quarto, por amor do Bão Jesuis! ”
Lancharam e se recostaram nos fofos travesseiros com cheiro de marcela, o colchão era de palha, uma leve sonolência se apossou do casal; parecia que flutuavam.... Podiam ver os seus corpos deitados na cama, mas também se viam no ar, e para piorar a estranha sensação começaram a ouvir gritos.... Foram até a janela e olharam para o pátio da pousada.
Atado num tronco, um negro seminu; a sua volta outros homens negros ajoelhados no chão, o estalo de um chicote cortou o ar frio da noite, gritos de dor... A jovem da recepção avançou e esbofeteou várias vezes o rapaz amarrado ao pelourinho, não satisfeita, tomou a faca da cintura do feitor e num gesto tresloucado, cortou a garganta do escravo fujão.... Neste momento, como atraída por um imã, voltou os seus olhos para a janela do quarto onde estavam os hospedes, e um brilho assassino clareou a escuridão; Marcelo e Patrícia desmaiaram de pavor.
Quando o dia clareou, Patrícia foi a primeira a despertar, e não acreditou no que viu a sua volta; estavam deitados sobre dois colchonetes esfarrapados, num lugar imundo, da porta aberta se avistava o carro, e algumas árvores. Acordou o esposo e ambos em estado de choque deixaram o local, e por incrível que pareça, o carro pegou sem nenhum problema na primeira tentativa de ignição.
Ao chegarem ao Centro Histórico da cidade, procuraram pela melhor pousada, e ao preencherem a ficha de estadia, descobriram que fazia uma semana que tinham saído de sua cidade natal. O casal estava abismado, não conseguia entender o que lhes acontecera, por onde andaram durante os sete dias de que não se lembravam.
No museu da cidade encontraram parte da resposta; no setor que cuida das lendas urbanas, das estranhas narrativas e causos que marcaram época na Princesa do Litoral, se depararam com a foto da pousada da beira da estrada, e com a história de Therência, a última sinhá do Solar dos Engenhos, que enlouqueceu por amar um escravo, e por não ser correspondida, o matou e depois tirou a própria vida; conta a lenda urbana que na data fatídica, ela costuma voltar ao mundo dos vivos e reviver o seu drama, sempre no dia dez de julho.
Marcelo e Patrícia não contaram para ninguém da cidade a sua estranha história, estavam tão apavorados que resolveram encurtar a lua de mel e voltar para casa, o lugar mais seguro que conheciam. No regresso pararam frente as ruínas do Solar dos Engenhos, e qual não foi o susto ao notarem que na janela, onde era o quarto em que estiveram hospedados, apareceu o vulto de uma escrava, e que sorrindo lhes acenou. Coisas estranhas aconteciam na Princesa do Litoral do passado, e coisa estranhas continuam a acontecer nos tempos atuais.
Gastão Ferreira/2019