O vestido vermelho
Sophia era linda, Sophia era pobre, Sophia era normal. A moça gostava de se bem vestir com pouco dinheiro, todas as suas roupas vinham de um brechó; como afirmam aqueles que têm muita vivência, que de perto ninguém é normal, Sophia não fugia da regra.
Caixa de um supermercado, no seu uniforme de trabalho era uma garota simpática, educada, de bem com a vida; trocou de roupa e assumia a personalidade da antiga dona da veste. A primeira ocorrência marcante foi quando se apaixonou por um lindo vestido estampado; mal colocou a nova roupa e igual a um autômato se dirigiu à ponte entre Iguape e Ilha Comprida e pulou na água. Foi salva por um pescador de manjuba.
Outra vez em que algo muito estranho aconteceu foi quando comprou uma blusa colorida; saiu de casa e entrou no primeiro carro que encontrou, os pneus cantaram e ela que nem tinha carta de motorista só foi parar na Ponte do Mathias após colidir com uma árvore e atropelar dois cachorros.
Marcaram consulta com um psicólogo; durante a espera de seis meses para ser atendida, muitos outros incidentes ocorreram. Graças ao Bom Jesus, nunca foi presa. O psicólogo nada encontrou de anormal, e Sophia continuou aprontando.
Irmã Dalila Carrapato, uma serva do Senhor, alma boa e grudenta que fazia jus ao apelido Carrapato, foi quem desvendou o mistério. Dalila fez uma prece, invocou o nome do Senhor, e ficou boquiaberta com o que viu; viu o momento exato em que a garota Amância Pinto tirou a vida se jogando da ponte, e ela estava com um vestido estampado. O quadro mudou e Carrapato sentiu a morte de Audrey Evelyn, a mocinha sonhadora que após uma overdose espatifou o carro do pai contra uma árvore, e ela estava com uma blusa colorida, a mesma que Sophia usava quando roubou o automóvel estacionado na avenida.
A mãe, o pai, os irmãos, os tios, os avós e alguns vizinhos não acreditaram nos poderes telepáticos de Dalila Carrapato, mas proibiram Sophia de frequentar brechós, pois nunca se sabe do que acontece nos descaminhos da vida. A mãe e a avó queimaram todas as roupas de Sophia, menos o lindo vestido vermelho, a veste que Sophia guardara para uma ocasião especial.
A família de Sophia nunca ficou sabendo que o vestido pertenceu a Edileusa Nunes, a mulher que durante uma festa de aniversário trucidou todos os parentes a machadadas. Os pertences de Edileusa foram doados à um brechó de caridade, roupas de marca, todas seminovas, o brechó que Sophia frequentava.
Sophia estava muito magoada; como tiveram a coragem de sumirem com suas melhores roupas! Quanta pobreza acreditarem nas palavras de Irmã Dalila Carrapato! Durante a festa conversaria com Dalila, não ia deixar barato a pilantragem da bruxa velha.
Tomou um banho, se perfumou, escovou os cabelos, colocou o vestido vermelho e foi para o quintal de altos muros; noite de calor intenso, sentiu um arrepio, um gosto de sangue na boca. Na mesa os comes e bebes, a mãe, o pai, os irmãos, os avós, os vizinhos, e Dalila Carrapato; Sophia trancou a porta da cozinha, e neste instante ela avistou um machado encostado na parede....
Gastão Ferreira/2017