O corpo seco
(Lenda urbana/Ilha Comprida/SP)
Seu Astório era um bom pai e Dona Didi uma excelente mãe; os gêmeos Astolfo e Ranolfo foram criados com o que havia de melhor; caldinho de manjuba, farofa de raposa, carne de tatu e tainha na folha da bananeira. Estamos no ano de 1780 na cidade de Iguape, litoral sul do Estado de São Paulo.
Astolfo, apelido Timbáu, era um garoto educado, tomava a benção aos mais velhos, rezada ao Anjo da Guarda antes de dormir, ajudava a mãe nas lides diárias. Aos dez anos de idade já sabia de cor e salteada a tabuada e conhecia todas as letras do alfabeto; não conseguia juntar letra com letra, mas era muito esforçado, seu sonho era fazer parte da marinha imperial.
Ranolfo, conhecido como Timbé, era o inverso do irmão Astolfo; guri debochado, respondão, mal humorado, bi-polar desde o berço, mostrava propensão ao mal. Infernizava a vida do mano Timbáu; maltratava animais, batia nas crianças menores, destratava os mais velhos e tudo isso em um tempo onde não existia a cola de sapateiro, a pedra de crack ou a maconha.
Aos quinze anos, Timbé capturou uma jaracuçu; não alimentou a cobra por um bom tempo, e, quando Seu Astório, após uma briga feia entre Timbé e Timbáu, castigou Ranolfo, ele colocou a víbora na cama do pai e adeus Seu Astório.
Timbáu desconfiou da maldade do irmão e também morreu vítima de mordida de cobra. Dona Didi comeu o pão que o diabo amassou nas mãos do filho tinhoso; o rapaz não gostava de trabalhar, furtava os vizinhos e batia na mãe. Até mesmo a madrinha, nhá Engracia, levou alguns sopapos do moleque ao tentar defender a comadre.
Dona Didi definhou lentamente amaldiçoando Ranolfo; ela morreu de fome e desgosto. Quando o povo ficou sabendo da ruindade do filho para com a mãe, incendiou a casa e Timbé fugiu para o manguezal. Uma onça suçuarana o matou, mas não devorou o corpo maldito e Ranolfo foi enterrado no cemitério indígena da vila de Ilha Comprida.
Após o sepultamento um fato estranho ocorreu; o corpo de Timbé, recém enterrado, reapareceu encostado ao lado de uma árvore junto ao campo santo. Cavaram mais fundo e jogaram o corpo na cova, mas novamente o corpo apareceu junto à árvore. Por muitas vezes o enterraram e a terra do cemitério jamais aceitou o corpo do filho amaldiçoado pela mãe.
Nesse enterra e volta a enterrar, o corpo secou e acabou esquecido na mata; nenhum animal carniceiro o tocou e por muito tempo o corpo seco assustou quem por ali passava. Ninguém sabe com certeza o que realmente aconteceu; falam que um raio o destruiu num temporal; outros dizem que o demônio o carregou para o inferno e algumas pessoas afirmam que durante uma missa na capelinha do cemitério indígena, o corpo seco se aproximou do altar, deu um grito horripilante e virou pó.
Essa lenda urbana livrou muitas crianças sapecas de se transformarem em adultos mal intencionados; era através desses causos que os pequenos aprendiam a obedecer a pai e mãe, respeitar os mais velhos, amar os animais e nunca roubar... Pena que não se criam mais lendas urbanas como as de antigamente.
Gastão Ferreira/Iguape/2014