Sozinha na estradinha

Muitas pessoas, hoje em dia, não acreditam em visagens; - “Isto é coisa de antigamente, coisa da época dos nossos bisavós, no tempo em que nem luz elétrica existia, coisa de gente sem estudo...”, dizem. Mês passado, em pleno século XXI, um fato muito estranho aconteceu em uma estradinha de terra no Bairro do Morro Seco; um casal de pedagogos, ambos cientistas sociais da capital do Estado, estavam à caminho de um quilombo para uma palestra. Uma senhora magra, mal vestida, com um lenço estilo bandana na cabeça, parada na beira da estrada pediu carona. O casal de professores, de bom coração, parou o automóvel e se ofereceram para ajudá-la; a mulher fedia, um cheiro de ovo podre infestou o interior do veículo, e a senhora murmurava; - “Não posso perder a missa das dezoito horas, não posso.”

Os donos do carro já estavam arrependidos pela boa ação; imaginem naquele fim de mundo dar carona para uma doida! Ainda bem que há uns seis quilômetros à frente, a senhora pediu para descer; - “Eu fico aqui na frente da capela; não posso perder a missa das dezoito horas, não posso! Obrigado pela ajuda; vão com Deus!”, desceu e aquele fedor dentro do carro continuou por um bom tempo. O casal estranhou, pois a capela era apenas um amontoado de pedras; - “Só pode ser doida a criatura! Eu, hem.”

Após a palestra foi servido um lanche, e o casal comentou sobre a mulher que pediu carona. “Ela estava embaixo de uma grande árvore?”, alguém perguntou. “O encontro foi na frente da lagoinha?", “Ela fedia a ovo podre?”, “Ela disse que não podia perder a missa das dezoito horas?”, “Ela desceu do carro frente as ruinas da antiga capelinha?”, tantas perguntas e todas as respostas afirmativas... Aí, tem!

O quilombo do Morro Seco, é muito antigo, antecede a libertação da escravatura; é um lugar isolado da civilização, casas esparsas em meio a luxuriante vegetação. Esta lenda urbana começou no ano de 1906, e foi quando a mocinha Toninha fugiu de casa com o Antunes, e andaram até Pedro de Toledo, e de lá, de trem partiram para a cidade de Santos, e desapareceram de nossa história. Toninha saiu de casa com a roupa do corpo, falou para a mãe, nhá Fininha que estaria na capelinha, assistindo a missa das dezoito horas, e que logo regressaria à casa; jamais voltou.

Nhá Fininha morreu acreditando que a filha fora raptada por algum fazendeiro, um daqueles inconformados com a Princesa Isabel. Ela tinha certeza de que de uma hora para a outra, a filha escaparia do cativeiro e se esconderia na capelinha; desde menina, Toninha jamais perdera uma missa das dezoito horas, e o sacristão, o Antunes era testemunha disso. Coisa estranha! O Antunes também desaparecera, estão dizendo que foi comido por uma onça.

Nhá Fininha passou anos e anos na esperança de reencontrar a filha. Na sua última ida à capelinha foi picada por uma jaracuçu, e morreu junto a grande árvore frente a lagoa; depois disso, uma vez por mês, seu vulto, costuma aparecer no local, exatamente no dia em que senhor vigário vem da cidade para rezar a missa das dezoito horas na capelinha do sítio. O veneno da jaracuçu apodreceu suas carnes, e um cheiro de ovo podre se desprendia do seu corpo; morreu sozinha e abandonada na beira da estradinha... Assustou e continua assustando muita gente.

O casal de pedagogos, depois de ouvirem o estranho relato, começou a acreditar que existem coisas para além de uma explicação lógica, e na volta para São Paulo, mudaram de caminho, seguiram pela estrada que vai para Registro, um percurso mais longo; eles acreditam que não encontrarão nenhuma visagem andando sozinha na estradinha de terra batida; coitados! Não sabem que terão de passar, e perto da meia-noite, bem na frente do sítio onde mora um dos nossos últimos lobisomem, mas isso é uma outra história.

Gastão Ferreira/2019

Gastão Ferreira
Enviado por Gastão Ferreira em 19/07/2021
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