A vela
Contam as lendas urbanas que na noite anterior ao Dia de Finados, ocorre na cidade de Iguape a procissão dos mortos. É o momento em que os falecidos visitam os vivos, e depois voltam para o além. As portas e janelas são trancadas ao entardecer, as crianças dormem mais cedo, as mocinhas não namoram.
Estamos no final do século XVIII, e Eliana Cristina, solteirona convicta, ninguém sabe o porquê se apaixonou assim sem mais nem menos pelo mancebo Agenor. O rapaz trabalhava de balconista na loja de secos e molhados, “A Princesa do Litoral”. Era um moço educado e de fino trato, bem-apessoado; um tanto tímido, mas gostava do que fazia, o que levava muitas donzelas a crer que houvesse um interesse maior na troca de sorrisos entre cliente e vendedor.
Cristina na mocidade fora enganada por um marinheiro, e cedendo aos apelos de Cupido, concedeu ao cafajeste um beijo; caiu na boca do povo. O navio zarpou, e Eliana Cristina nunca mais conseguiu um namorado, era apontada, e tida como uma devassa.
Na verdade, a moça era zero bala, ela nunca se conformou com a pecha de pecadora, mas a voz do povo é a voz de Deus, e até o padre andou fazendo algumas perguntas bem íntimas, na hora da confissão. Seu coração disparou quando viu Agenor pela primeira vez, mas só teve coragem de falar com o jovem na centésima visita à loja; ah, o amor!
Paixonite de solteirona é pior do que sarna; Eliana Cristina sabia tudo sobre o Agenor. Conhecia seus gostos, seu perfume predileto, qual jornal comprava na banca, seu itinerário, a hora em que saia do serviço, a marca do seu relógio de bolso; a loja fechava às 18 horas, mas o rapaz só voltava para a casa depois das 22 horas, pois também era o encarregado de repor as mercadorias e verificar o estoque, e, todo o santo dia, às 22 horas, lá estava Eliana Cristina na janela, na espera de vê-lo passar.
Esquecida de que amanhã será o Dia de Finados, e de que hoje, ninguém tem a ousadia de sair de casa após as 20 horas, Cristina se debruçou no parapeito, e ficou paralisada. A procissão dos mortos estava em curso, e neste momento passava frente à sua janela.... Um horror!
Vultos de longas vestes, com capuzes escondendo o rosto, portando uma vela acesa, caminhavam lentamente no entorno da Praça da Matriz. O silêncio era assustador; uma rapariga, com um pedaço de corda amarrada ao pescoço, provavelmente uma moça que tirou a própria vida, deixou a fileira dos mortos, e se aproximou da janela; - “Pegue esta vela, Eliana Cristina, é um presente de alguém que morreu devido à um amor fatal; também fui apaixonada por Agenor. Coloque a vela sobre o teu criado-mudo, ao acordar pela manhã, todos os teus problemas estarão resolvidos. ”
Cristina, apavorada, trêmula, morta de medo, pôs a vela no local indicado, e praticamente desmaiou.... Ao acordar, achou que tivera um pesadelo, e sonhado com a procissão dos mortos; olhou para o criado-mudo, e sobre ele estava um osso humano, um fêmur. Era ele a vela que a moça suicida lhe presenteara.
Gastão Ferreira/2017