Sem lenço nem documento
De desgraça Walmor estava cheio. Estava há dois anos parado, sem trabalho, sem casa, sem objetivo e, especialmente, sem a sua doce Dora. Sentia-se um rato, um enorme rato repudiado por todos. Perdeu o pequeno apartamento que comprara para viver seu amor com Dora. Não conseguiu pagar as suas prestações que, com o desemprego, viraram um elefante no seu pequeno orçamento. Alugou um quarto nos fundos de uma casa antiga habitada por uma senhora solteirona, no bairro do Partenon.
Em relação à Dora foi pior, um verdadeiro terremoto no meio de tudo. Ele, padeiro, perdeu-a para um confeiteiro da rotisserie em frente. O amor entre os dois era tanto que Walmor ficou imaginando que Dora só poderia ter se perdido pelo mashmallow do concorrente, porque de qualquer tipo de pão ele entendia.
Dora saiu de casa com as roupas do corpo e os olhos brilhantes de paixão. Não olhou para trás, nem mesmo para agradecer os bons anos que vivera com ele com certa dignidade para o seu padrão de vida. Walmor a sacou de um cabaré barato na Voluntários da Pátria e
jurou, na época, que a endireitaria como mulher. E assim a fez, até ela conhecer o confeiteiro e, possivelmente, o seu mashmallow.
Chegou o sábado e, como nos dias anteriores, Walmor não queria sair da cama. Letárgico, acabou acordando com uma chamada telefônica. Era Bruno, seu primo irmão, o único em meio ao nada que o entendia.
Convidou-o para subirem a serra para participarem de uma festa junina no interior da cidade de Bento Gonçalves. De antemão falou que pagaria tudo, da gasolina à comida. Ainda cambaleante Walmor optou por aceitar o convite, estremecido que ficou ao pensar que ainda viria o domingo e, até lá, possivelmente ninguém passaria pelos seus olhos.
Por volta das quatorze horas começaram a subir a serra e a leve brisa serenou os pensamentos tristes, trazendo alguma esperança para a chegada.
A localidade se chamava Otávio Rocha e nela passearam até chegar o horário da festa. Tudo bem organizado, com bandeirinhas coloridas, fogueira, bancas de guloseimas e uma italianada de dar gosto. O sotaque puxado de algumas moças fez com que Walmor gargalhasse como há muito não fazia.
Eis que de repente recebeu um bilhete, proveniente da barrada “Correio do Amor”. No bilhete, com letras cursivas estava escrito: “Quero muito ti conhecer. Amanhã, às dez horas, no coreto!”. Não entendeu! Seguiu na festa e até dançou uma quadrilha com uma das moças da Barraca do Beijo, mas não ousou beijá-la. Era demais para ele.
Bruno o chamou para decidirem se retornariam na madrugada ou pernoitariam em uma pensão na localidade. De pronto Walmor optou pela segunda alternativa.
Deitou-se meio zonzo com o vinho doce que havia tomado em larga escala e logo adormeceu. Acordou por volta das nove horas de sobressalto. Lembrou-se de um sonho que tivera: uma
linda moça, semi nua, com traços completamente diferentes de Dora, o havia chamado para um baile. Não lembrou-se da sua reação no sonho, muito menos do seu fim, mas remontou-se à moça do bilhete e, mesmo sem tomar café, correu para o coreto.
Feliz, conseguiu chegar a tempo.
Escrito para a Oficina Provocações - módulo 05 - Pragmatha Editora