PANDORA
-Por que a Pandora está latindo desse jeito!
-Aquele idiota está passando com o cachorro de novo pela viela. Oito horas da manhã! Da próxima vez eu vou deixar a Pandora solta. Pode ir na Delegacia, pode fazer B.O., eu não estou nem aí, ela vai matar esse cão e o babaca do dono!
As vozes vinham de dentro da casa de esquina na viela que ele subia para voltar para casa Sempre nas suas folgas saia cedo para comprar pão e aproveitava para passear com seu labrador. Uma onda de ódio o tomou como o fogo de quando se joga gasolina em uma fogueira
-Acorda aí oh otário! Estou soltando meu cachorro da guia agora! Solta essa vira-lata que se meu cão não matá-la, eu mato!
Foram as palavras que tentou falar, mas o cão, fosse pelo cansaço ou porque pressentiu a confusão, o puxou com toda a força, só parando no portão de casa.
Abriu-o. Sua esposa já o esperava na sacada:
-Comprou o leite e a margarina?
-Não! Vou lá buscar! Vem Thor, vamos passear de novo!
-Não precisa, não precisa! Eu tenho que sair e já aproveito passo lá e pego. Prende o cão e não sai de casa!
Vinte anos de casados, já conhecia o marido e viu que algo acontecera. Era melhor deixá-lo esfriar a cabeça.
Abriu o portão para que ela saísse com o carro a muito contra-gosto. Assim que ela saiu e que fechou o portão, virou seu olhar para cima e começou a gritar:
-É assim agora?! Para Te servir eu vou ter que virar um banana, um covarde?! Já estou fazendo um baita de um desvio para não arrumar encrenca com os outros vizinhos, agora vou ter que ouvir qualquer pulha me ofender e não revidar?!
O cachorro, depois de beber bastante água, veio e começou a pular em cima dele. Acariciava-o mecanicamente.
-Pombas Senhor, eu andava com o Thor por todo canto, por tudo que era bocada. Já enfrentamos gente armada juntos, gangue de mais de nove cachorros atacando todos ao mesmo tempo. Desde que eu estou tentando Te servir já abaixei a cabeça prá tudo quanto é mané para não arrumar confusão, só saio com sacolinha para não deixar o cocô dele na rua, já ouvi um monte de coisa e abaixei a cabeça. Eu não aguento mais não Senhor! Eu não tenho sangue de barata!
Em um impulso foi e abriu o portão, crente que o cão sairia de novo. Ele apenas olhou para ele e continuou pedindo carinho.
-Que saco Thor! Você também!
Procurou no bolso o maço de cigarro até se lembrar que não fumava há mais de três meses. Abriu a torneira da mangueira e jogou água em cima da cabeça, tentando se acalmar. Chorava de raiva. Sentou na calçada com o portão aberto e o cachorro do lado.
Acariciando-o, lembrou-se de quando o trouxe da casa dos sogros porque estes não conseguiam cuidar, de todo o trabalho que teve para treina-lo, de como ele mordeu a mão do ladrão e o desarmou quando o levou em um bico de segurança. De como chorou porque teria de deixa-lo com a mulher quando esta pediu a separação. De como prometera ser um homem diferente para Deus e a esposa. A paz que vivia depois de tantos anos...
Ela parou o carro na rua quando chegou, visivelmente preocupada:
-Tudo bem amor?
-Tudo... Como era aquela estória que nós ouvimos na Palavra do último culto?
-Qual estória homem?
-Aquela do cara da baleia que ficou bravo por causa de uma figueira?
Ela o olhava sem compreender nada.