Ramon e a madrinha
Ele admirava a feminilidade cativante da madrinha espirituosa e sempre bem-humorada, ganhadora de duas medalhas em competição de nado livre em sua cidade natal. Cuidado por ela desde pouca idade, quando perdeu os pais em um naufrágio, do qual sobreviveu graças a essa amorosa e aguerrida madrinha que os acompanhava na viagem, já que esta conseguiu lutar bravamente contra a gula das águas que embrulhou o iate com todos, exceto os dois, Ramon adotara os trejeitos e a etiqueta a que a ela o expunha cotidiana e naturalmente ano após ano, sem pretensão alguma.
Bem-sucedido na profissão, era um personal stylist extremamente dedicado aos clientes que o requisitavam, e não eram poucos, mas dava conta de cumprir sua agenda, por escolher trabalhar periodicamente apenas com selecionados que atraíam fortemente sua atenção, beneficiando-se sempre das sugestões perspicazes que a madrinha, mesmo um tanto obesa e já em idade avançada, ainda lhe dispensava.
Ao menos duas vezes ao mês a levava para apreciar a orla da metrópole onde se estabeleceram. Havia ocasião em que costumavam sentar em um banco do local como espectadores de tela vívida e memorável, onde cada um a seu modo dialogava com os mistérios do mar por algumas horas antes de retornar ao confortável bangalô no qual moravam e onde recebiam oportunamente amigos de Ramon. A madrinha, quase centenária e de boa memória, adotara, como seus, os amigos do afilhado.
Na ceia de virada para o ano regido por Aquário, ela entalou-se com um ossinho que, por descuido do cozinheiro, escondia-se solto na coxa da galinha caipira que ela desejou em seu último jantar. A etiqueta da madrinha era transgressora em certos gostos culturais. Não apreciava peru.
Muito sentido com a perda, o afilhado, que com ela aprendera a adocicar as próprias tragédias, decidiu ele mesmo cuidar do corpo da falecida, auxiliado por uma amiga de profissão, para a qual confidenciou uma das melhores lembranças que guardaria de sua madrinha, quando ela se referira a si mesma avaliando a decrepitude com que o tempo presenteia a todos que resistem à partida precoce, fugindo por mais tempo de certeiro destino, e aos demais que caminham desatentos, ávidos ou lentamente, para o mergulho na cova que cada um já encomenda com o nascimento.
Sentada diante do espelho enquanto Ramon lhe alinhava os cabelos, virou-se a pegar um broche na penteadeira ao lado, pondo de leve parte de uma das pernas pesadas sobre o joelho direito. Chacoalhada pela própria imagem no espelho, analisou o excesso de covinhas _ distribuídas regularmente conforme a lógica do sistema orgânico _ que notou ali refletidas: “veja, Ramon, como muitos ficam até mais cedo com essas partes do corpo assim como o meu, principalmente nas nádegas e nas coxas”, e suspirou recompondo-se, acolhendo feliz, em seguida, a interpretação do afilhado: “Normal isso, madrinha, aliás suas pernas estão é muito bem acolchoadas nessa linda pele matelassê.”.
Naquele momento, ela sorriu triunfante, sentindo-se premiada por toda a ternura que dedicou generosamente ao afilhado gentil e afetuoso.