Pavane
Pavane
Passageiro noturno. Amante aleatório. Recalcitrante. Bares meia luz. Silêncios. Gosto de. Sem medo. Não temes a escuridão das pensações dos malsinados? Temo as pulsações dos mal amados. O cais. Casais em busca de sabe-se lá o quê. Há motéis. Há casas e apartamentos. Me ajeito. Forro o banco. Desembainho o sax. “ Everytime We Say Goodbye”. Anos de prática. Fecho os olhos, As notas dançam à minha frente, vislumbro Cole Porter compondo ao piano, vejo-me com ela dançando em nuvens urbanas, filme de Robert Wise com coreografia de Jerome Robbins. Meus sons invadem espelhos, lustres de cristais a abonar nossos corpos. Respirações boca a boca, meu nariz roça o dela, não há lua, não há estrelas, o cheiro salgado da maré, o cheiro suado de nós dois. Aplausos me despertam do êxtase, agradeço meio fulo, meio narciso. Alguns colocam umas notas no chão. Não quero. Rejeito. Eles insistem. Toco por prazer. Toco por ela. Toco pela noite. De dia sou alma, à noite sou féretro. Um grupo de vinte casais a me olhar. Vou de Tenderly. Novamente, vejo Nat King Cole, com aquela dicção de negro spiritual, perfeita, voz grave. Não à toa, king. Burburinho. Um homem acabou de se ajoelhar e pedir a amada em casamento. Aplausos e oh-oh-oh, que lindo. De olhos fechados também a peço em casamento. Ela me toma pelas mãos, me leva à alcova e me abraça. Um abraço de lascívia e desespero. No túnel dos olhos dela vejo um trem desgovernado em direção ao abismo. Tento detê-lo, ela grita. Me empurra e se espatifa na escuridão do sei lá. Por quê? Novamente os aplausos implodem meu sonho. Muita gente. Noite se arrastou e entardeceu os desejos.
Sede. Peço licença, eles se afastam, pego a garrafa térmica tosca. Suco de cajá. Entorno-o de uma vez. A dona de uma barraca me traz um caneco de café. Agradeço. Cê toca bem. Meu marido era músico. Tocava trompete, ou pistom. Gosto de chamar pistom. Riu. Posso pedir-lhe um favor? Pode. Conhece um sujeito chamado Ravel? Conheço. Tem uma música dele que meu marido tocava e que amo. “Que não seja o Bolero, por favor”! Uma música que remete a um funeral… Conheço essa. Belíssima. Ele tocava ao pistom? Sim. E eu me lambuzava de lágrimas. Pode ser? Vou tentar. Esse tipo de peça seria melhor com partitura. Mas, vou tentar. E obrigado pelo café. Pôs as mãos em meu rosto, disse obrigado num fio de voz. Acompanhei-a com o olhar. Multidão esvaiu-se. Massageei os lábios. Pavane Pour Un Infante Défunt. Sabia-a de memória. Difícil. Tinha a ver comigo. Elegia. Rasguei o véu da mágoa e do ciúme, xinguei ela, me xinguei. Depois, nunca mais. Era eu só. E a música. Comecei. Nas primeiras notas, algumas almas. Um aperto na garganta, desfilei a peça em notas pungidas, as lágrimas salgaram a imagem dela, afogaram-na, ela me pedindo socorro, neguei-o. Enterra-la-ia com Ravel. Com música amei-a, com música a mataria. Shakespereanamente.