7, número do assassinato
O primeiro tiro pegou em sua perna, bem no meio da coxa. Essa foi a abertura de uma sequência de 7 disparos que perfurou seu corpo, caído na grama. O segundo pegou em sua barriga e junto com ele veio um gosto amargo na boca. O terceiro, no braço, trouxe a lembrança da infância correndo nas vielas do morro. O quarto atravessou sua canela (já estava deitado no chão, mas o atirador não parou com a sequência). Ele já nem sabia qual parte do corpo estava sendo atingida. O quinto tiro veio pelas escolhas erradas tomadas em sua vida. O sexto foi a voz da sua mãe dando conselhos. O sétimo e último foi a sentença dada pela vida: o destino final é resultado do caminho.
Existem inúmeras coincidências inacreditáveis. A impressão que temos, ao analisar alguma fatalidade do destino, é de que caminhos já foram traçados e escolhidos. A pergunta que fazemos é quem? Qual ser possui o poder de fazer trançar os caminhos de uma pessoa? Entrelaçando com os de outra, formando assim uma trama. Esteticamente, tramas e tranças são feitas para serem belas, inteiras, bonitas e alinhadas, mas os nossos destinos nem sempre são assim. Há maldade na mão de quem trança estas linhas?
O número 7 simbolicamente é a perfeição, a espiritualidade, o lado místico da vida. Alguns privilegiados conseguem sentir e ver a perfeição desse número, recorrendo a numerologia e dizendo com a boca cheia “Sou regido pelo número da perfeição, 7”. Outros não sabem o significado, nunca nem se quer sonhou com a existência da numerologia. Sendo assim, a perfeição corre desses indivíduos. Apesar disso, é inacreditável as coincidências da vida.
Maria era mãe de três filhos, o primeiro morreu com quatro anos de tuberculose. Os outros dois, Mateus e Lucas sobreviveram até quando o destino falou chega. Maria escolheu nomes bíblicos para tentar disfarçar a desgraça do lugar onde moravam, quem sabe os meninos não virassem pastor ou membro da igreja. Entretanto, a ironia da vida desfez a tentativa da mãe.
Morar na favela nunca foi o problema para essa família que não conhecia outros lugares, é difícil achar ruim o lugar que vive quando o mundo só te apresentou uma opção. A comunidade era completa, lá se estudava, trabalhava, se divertia e morria. Todo um ciclo em apenas um lugar. Mãe e dois filhos moravam em um barraco herdado não se sabe de quem, mas cuidado com muito zelo e capricho. Durante as manhãs, juntas com o sol, pessoas acordavam dispostas a mudar de vida, ou a vida disposta a mudar com as pessoas.
Mateus, o primogênito, levantou mais cedo. Não estava tão cansado e ficou rolando a noite toda na cama. Seus amigos estavam tramando uma fita e o convidaram para participar. A ideia martelou sua cabeça enquanto a lua clareava as ruas. Deitou-se no sofá velho de dois lugares e levou seu cobertor para tentar amenizar o frio que estava no morro, seu barraco era feito com paredes finas e o frio entrava sem pedir licença. Ligou a televisão e esperou seu irmão e sua mãe acordarem, assistindo desenho animado e viajando em suas memórias nos tempos de criança.
A vida nunca sorriu para o filho mais velho que desde muito cedo viu sua mãe trabalhar sozinha para sustentar a casa e ele cuidava do irmão, mesmo assim, faltava comida, roupa, cobertor, calor e afeto. Mulheres solo constroem uma barreira gigante para não verem a sua dor e seu sofrimento. O menino não tinha brinquedos e sua brincadeira era nas vielas do morro, aprendendo a ser polícia e ladrão, mal sabia que anos depois a brincadeira valeria para alguma coisa.
Depois de algum tempo, seu irmão mais novo acordou junto com a mãe e foram logo para o espaço onde, improvisado, havia uma cozinha. Sentaram-se à mesa e sem muitos olhares e com poucas palavras comeram o seu último café da manhã reunidos. Pão amanhecido para preencher o vazio do estômago e o café forte para tentar fortalecer o corpo para um dia de trabalho e a mente para não sucumbir. Maria se arrumou e partiu para o trabalho, Lucas, o mais novo, já entregue à bebida, saiu logo em seguida em busca do seu primeiro trago de cachaça; Mateus depois daquele momento decidiu que iria aceitar a proposta dos meninos da viela.
Cansado de ver sua mãe trabalhar e não prosperar, seu irmão apesar de novo e já desiludido com a vida, percebeu que a razão estava morando apenas em sua cabeça, precisava usar esse dom para tirar sua família daquela inércia. Aceitou participar de um pequeno assalto a uma casa lotérica que ficava no começo do morro. Os riscos eram poucos, já que sua equipe iria totalmente armada. Os olhos brilhavam ao lembrar do valor estimado do roubo, o suficiente para sair da favela, mesmo sem saber para onde ir. Acreditava que os problemas da mãe e do irmão eram pertencentes à favela, e no momento em que saíssem daquele ambiente, magicamente desapareceriam.
Saiu apressado para encontrar as pessoas e se apropriar dos planos que os levariam para uma vida diferente, muitas vezes não sabiam se a vida seria melhor, ou pior, buscavam a mudança. Entrou em um beco onde tinha dois moleques guardando a entrada e encontrou três homens dentro de um barraco, todos com o armamento já separado e já passando as instruções para Mateus.
— Cara, não tem erro! Você só vai ficar do lado de fora dando cobertura para os mano de lá de dentro — O chefe da ação falava entusiasmado ao Mateus.
— E a grana?
— O dinheiro vamos fazer a divisão aqui no barraco, depende de quanto os cara conseguir levar, tudo depende do sucesso da atividade…
— Isso aqui tem munição? - Olhava para a arma, já sabia mexer e manusear aquele artefato.
— Carregada. Se tiver problema é só sentar bala nos cara.
Mateus falou para si mesmo que aquela seria sua primeira e última vez se envolvendo com aquele tipo de assalto, não poderia colocar a sua vida em risco para ganhar tudo na vida. É preciso pensar nos que ficam.
— Mateuzin, amanhã no horário combinado o carro passa e te pega, falô?
Mateus respondeu que sim com a cabeça e saiu.
Seis e trinta e nove o carro preto já estava na porta de seu barraco. Sua mãe dormindo e seu irmão na rua, não sabia onde estava. Fez uma prece antes de entrar no carro, olhou para trás e sentiu seus lábios beijando o rosto de sua mãe que estava na cama e disse em pensamento que ela o esperasse logo logo para que pudessem seguir um novo rumo na vida.
Chegando na esquina da lotérica cada homem já tinha o seu papel combinado e bem estudado, um abordaria o segurança que iria abrir a porta e outros dois entrariam para fazer o assalto e levar o dinheiro. Mateus ficou do lado de fora com a arma apontada para o rumo da ação. Se algo desse errado, não pensaria duas vezes para matar os policiais e salvar seus companheiros. A primeira parte do assalto ocorreu sem nenhum problema. Até que, por trás, Mateus escutou a viatura da polícia e antes que pudesse mirar para atirar, sentiu um impacto na sua coxa e caiu de joelhos já desarmado.
Uma sequência de sete tiros às 7h da manhã.
“Dois feridos e um criminoso morto”. Assim saiu a manchete do jornal local horas depois. A mãe, assim como todas que perdem o filho precocemente, nunca mais conseguiu forçar um sorriso no rosto e o irmão se entregou ainda mais à bebida. A coincidência chegou sete dias depois. O irmão, não feliz em seguir a caminhada de sua vida sozinho, resolveu acompanhar o outro.
Três dias depois do sepultamento, saiu cedo para poder iniciar sua rotina com o álcool e no seu primeiro gole de cachaça caiu no chão, sentindo o impacto do seu corpo na calçada. Sua vista ficou turva e não conseguia enxergar nenhum rosto que estava ajudando-o a levantar. Após um bom tempo desacordado, abriu os olhos no hospital e conseguiu ver sua mãe chorando e ouviu a voz do médico sentenciando a sua vida: “ — uma cirrose, muita avançada para a idade dele.”
Na missa de sétimo dia do irmão, Lucas jogou-se nos braços da morte confiante que encontraria Mateus. Sozinha, Maria tentou dar um fim em sua vida de muitos jeitos, mas sem sucesso. Andava desorientada e buscando um significado para aquilo. Será que encontraria uma resposta na numerologia, com aqueles vídeos de mulheres ricas, em paz, proferindo mantras e falando que o 7 é a perfeição? Porra nenhuma!