Maria Bailarina
Era seu sonho de menina, sapatilhas cor-de-rosa, saia de tutu, coque no cabelo. Maria alcançou o auge da carreira aos 26 anos. Primeira bailarina da companhia. Fazia viagens internacionais, vivia na estrada.
Tão linda flutuava com a leveza das borboletas, com a magia das fadas, com a disposição de uma menina apaixonada pela arte de dançar.
Treinava doze horas por dia, tinha pés horrendos, pés monstruosos torturados pela sapatilha de ponta, mas ela portava uma elegância tão aristocrática que pouco se importava com os machucados de seus pés. As sapatilhas não revelavam suas dores, mas revelavam seu talento.
Maria era torturada, mas não torturava ninguém. Encantava a plateia que ficava embevecida com sua dança delicada, irrepreensível, limpa, perfeita.
Maria sabia ser suavidade em seus gestos, em sua fala calma, no tom modesto e tímido de sua voz. Não se abria. Pouco se sabia de sua história, do seu passado, sobre sua família ou sobre suas lutas internas.
Muito se especulava sobre seu futuro, sua sorte, seus possíveis amores, muito se sondava sobre suas ambições e perspectivas. Ela nada dizia, apenas sorria tímida e rubra.
Mas ela sabia que enlouquecia pouco a pouco. Sabia que não estava bem pelo lado de dentro, que sua alma dançava controversa, não era balé, era algo funesto, sua alma bailava doente com trajes obscuros e rasgados, ao som contemporâneo e transgressivo de um John Cage ou de um Schoenberg. Não era alma para um Tchaikowsky.
Maria se tornava duas mulheres partidas. Ambas com olhar perdido e mal embalado. Não sabia mais se era feliz ou se estava torturada, se alguma sapatilha de ponta lhe arroxeava também o peito e a alma.
Naquela manhã o jornal falou de uma bailarina promissora que trazia orgulho a uma nação. Uma bailarina sem igual, de uma elegância natural e sublime, de uma genialidade descomunal. O jornal noticiou que ela pertencera a várias companhias sendo estrela em todas elas, ela seria mundialmente conhecida e ainda alcançaria mais sucesso do que toda e qualquer bailarina ao redor do mundo. Ela era única, admirável, tanto no palco quanto na discrição de uma vida sobre a qual pouco se sabia. Mantivera em sigilo tudo o que não era sua carreira, e fez de sua carreira o foco de toda sua vida. Maria era promissora e certamente ganharia todo o reconhecimento e congratulação que as melhores bailarinas poderiam algum dia alcançar, mas Maria bebeu veneno ontem a noite.
Do meu livro: Como morrem as Marias