AFOGAMENTO
O Sol se escondeu rápido por detrás das enormes montanhas que se emergem do mar, tingindo de dourado as nuvens que se formavam no horizonte. A tarde foi sendo tomada por uma penumbra crepuscular. A água do mar foi se fazendo num mármore escuro... numa ardósia, misteriosa e bravia. E o vento sul, que soprava ainda mais forte, marulhava as ondas que se ressacavam na areia branca da praia.
Da janela de nossa casa, eu fitava as folhas secas dos coqueiros a se encontrarem, movidas pela força do vento. Os ruídos diversos iam se misturando, formando um som único e amedrontador. O céu foi sendo encoberto por nuvens escuras e pesadas. Ao longe, ouvia-se, já, os trovões... Uma forte chuva já se anunciava; logo os primeiros pingos começariam a cair.
Na praia, movimento de pessoas e canoas. Eram os pescadores que retornavam de suas fainas diárias, tirando as suas embarcações da água para que não se quebrassem, sendo jogadas pela força das ondas. Muitos, dali, buscariam suas casas, seus ranchos, o aconchego de suas mulheres e de seus filhos. Alguns passariam, antes, na taverna do Manuel, para tomar uma cachaça e jogar conversa fora.
Não demorou escurecer por completo. E, com o breu da noite, veio a chuva forte e permeada de relâmpagos e trovões.
Com medo, fechei a janela e fiquei sentada no sofá ouvindo a chuva cair no telhado e vendo a claridade dos relâmpagos pelas frestas da parede; Joaquim nunca se preocupou em colocar matajuntas nessas frestas, de modo que algumas pareciam verdadeiras janelas. Permaneci ali no sofá, encolhidinha, por horas, enquanto a chuva cai.
O tempo lá fora e todo o medo que sentia naquele momento fizeram suscitar dentro de mim um pavor terrível. Começou vir à tona os últimos acontecimentos... Meu coração parecia apertar-se dentro do peito. Arquivos desorganizados afloravam em minha mente... Era tudo muito confuso e nebuloso... Já era tarde. O tempo passou rapidamente.
De repente, após algumas batidas na porta, ouvi, vindo de fora: “Catarina!” “Catarina!” “Catarina!” Receei! De ímpeto, encolhi-me ainda mais no sofá, abraçando-me a uma almofada e assumindo uma posição uterina. Ainda ruminava os últimos acontecimentos... as últimas palavras... os últimos gestos...
Mais algumas batidas.
“Catarina, sou eu; abra essa porta!” – Falou com a voz, um tanto rouca e bravia.
Nada fiz. Encolhida no meu canto, tremia de medo.
Do nada, depois de algum tempo, vi quando a maçaneta se mexeu e, num movimento brusco a porta se abriu; havia me esquecido de chaveá-la.
– O que você quer ainda, Joaquim? Não... não basta o que já me fez? – perguntei com a voz embargada e trêmula.
– Esta casa é minha, e você é minha mulher; posso sair e chegar quando quiser; faço o que bem entender. – Falou, segurando forte em meus braços e me erguendo do sofá.
– E você tem que se subordinar a mim. – disse, trazendo meu rosto para próximo do seu e me olhando nos olhos; fazendo que eu aspirasse aquele hálito forte de cerveja com cigarro.
– Me solta! Está me machucando! – disse com as lágrimas brotando nos olhos.
Com ódio nos olhos, que estavam vermelhos e apavorantes, ele me impulsionou contra a cadeira.
De súbito, aproveitando que a porta ainda se encontrava aberta, concentrei todas as energias do meu corpo num ato desesperado. Levantando-me rapidamente, projetei-me porta afora, mergulhando na escuridão da noite e em meio ao temporal, indo numa desabalada carreira em direção à praia.
Irado e surpreendido com minha atitude repentina, Joaquim quis alcançar-me, correndo e gritando: “Volte aqui, Catarina!”; “Catarina!...” “Catarina, espera; vamos conversar...” “Ah! mulher! Eu te pego!...”
Mas eu não olhei para trás em nenhum momento. Apreensiva, fugia desesperada, impulsionada pelo tropel dos passos, firmes e determinados, que Joaquim imprimia no chão, e que parecia cada vez mais perto de mim.
Quando ganhei às areias fofas da praia, minhas pernas estavam bambas; não iria longe. Naquele momento, toda a praia era um grande deserto. O rancho mais próximo ficava a uns trezentos metros dali; mesmo se eu gritasse não seria ouvida. Chovia muito forte.
Sem muitas alternativas, fiz a única coisa que me restava naquele momento: avancei mar adentro, lutando contra as marolas que pareciam querer me levar de volta para a praia. Quando a água estava na minha cintura, mergulhei e nadei para um lugar mais fundo.
Joaquim veio cegamente em meu encalço, e foi entrando na água gritando: “Catarina!” “Catarina!” “Vou pega você, sua sem vergonha!” “Você vai me pagar!”
Eu gritava, chorando: “Não venha, Joaquim; está fundo!” “Volte! Volte!”
Ele não me escutava. Estava enfurecido. Fiquei, numa distância segura, me equilibrando naquela água turva e agitada, enquanto via o vulto de Joaquim avançando na minha direção.
Quando vi que as marolas já estavam passando pelos seus ombros e ele, naquela determinação obcecada por me alcançar, quase perdendo o chão firme, por chegar onde não daria pé, mergulhei em sua direção e o puxei pelos pés para o fundo, nadando em seguida, rapidamente, para longe.
Seu alvoroço, naquele momento, foi tremendo, fazendo força para não engolir a água do mar e, ao mesmo tempo, numa tentativa louca para conseguir respirar.
Nadei de volta à praia e, já na areia, vi suas últimas emersões desesperadas, debatendo-se, na tentativa de encontrar o fôlego de vida. Mas, logo, sem conseguir vencer a força das águas, sucumbiu-se. Olhei para todos os lados, para me certificar de que ninguém assistira aquela cena... Olhei de novo para o mar, como se fosse uma despedida, e voltei para casa.
Ainda chovia. Tomei um banho e me agasalhei. Não consegui dormir. Minha noite pareceu uma eternidade. Ouvindo o barulho da chuva no telhado, fiquei fazendo uma retrospectiva de minha vida.
Fiquei relembrando as bofetadas que ganhava; os xingamentos, as acusações... Ainda tinha as marcas, no corpo, de suas agressões. Lembrei-me da vez do revólver, quando ele abriu o tambor e, colocando um projétil, bateu-o e girou-o rápido, apontando para a minha cabeça, disse: “Quero ver se você tá no seu dia de sorte!” Ele apertou o gatilho três vezes. Por ironia do destino, os disparos não se deflagraram.
Não tive culpa se ele não sabia nadar... Eu estava fugindo, ele é que veio atrás... Se ele tivesse me atendido...
Pela manhã, cessando a chuva, os pescadores colocaram suas canoas no mar e continuaram suas rotinas de todo dia.
Somente, uma semana depois foi que o corpo de Joaquim boiou, inchado e já com algumas partes comidas pelos peixes. Quem o achou foi um homem que extraia ostras nas pedras da costeira, bem distante da praia. Esse homem chamou alguns pescadores, que chamaram os bombeiros, que o tiraram da água e o levaram para a delegacia.
De minha parte, só fui reconhecer o corpo e responder algumas perguntas de praxes, na delegacia.
O sepultamento ocorreu com a presença de duas sobrinhas, um tio e meia dúzia de amigos – os mais chegados. Nada me perguntaram sobre a morte, apenas lamentaram o jeito trágico.