Miguel
Viu-a. Pairava sem esforço e, depois de fazer uma curva larga, baixou até à proa do barco. Recortava-se no azul do céu e, em breve, disputava um peixe que ficara retido nas redes amontoadas na embarcação. Ainda Miguel lidava no amanho do carapau para o almoço e já a gaivota com gula fazia desaparecer na goela o pitéu colhido na rede. Ficou ali parada a olhá-lo sem qualquer receio. Aguardava que a generosidade lhe oferecesse um reforço de alimento. O homem, pousando a navalha, escolheu um dos peixes menores e atirou-lho. Salgou o carapau e esperou que grelhasse. O gato aguardava pela sua vez à beira da água. Sabia que o pescador não se esqueceria dele. Eram amigos de longa data. Pouco depois trazia a porção do gato e animou-se com a sua vontade. Esta noite dormiria no barco e talvez o tareco quisesse fazer-lhe companhia. Trouxe-o para bordo e deitou-o na única manta que havia. O felino, deu meia volta e acomodou-se para a sesta. Quando miasse ele o levaria para lugar seco, como de costume. Tinha Miguel uma gaivota e um gato. Não tinha amigos. Achavam-no calado e não bebia. Há momentos da vida em que só olhos diferentes podem ver-nos por dentro, pensava. E se o lessem talvez em vez de conhecidos pudesse ter amigos, em vez da sua indiferença ela pudesse aceitá-lo se lhe pedisse.