Tudo o que eu não sei contar
Ela chegou ao trabalho três semanas antes, com uma marca sobre o olho direito. Foi em uma segunda-feira. As amigas mais próximas perguntaram preocupadas se havia acontecido alguma coisa. A resposta foi: “Um pequeno acidente, bati sem querer no armário da cozinha”. A mulher sorria sem graça, com o riso de canto, sem força e expressão como o sol quando acaba de se pôr, deixando transparecer apenas os últimos raios teimosos e frios.
Poucos dias depois, uma marca roxa no braço e ela disse que estava tudo bem, caiu durante o banho. Em seguida, faltou o trabalho por dois dias. O pessoal da central de atendimento estranhou. Ela é sempre tão dedicada ao trabalho. O supervisor enviou uma mensagem e no dia seguinte ela estava em seu posto, sempre pronta e à disposição com toda a generosidade habitual e com a mão quebrada.
O intervalo entre os pequenos acidentes domésticos diminuíram. Ora eram acidentes, ora eram faltas justificadas pelas necessidades do filho pequeno. Começou a faltar também à musculação e à caminhada aos sábados pela manhã.
E assim, principalmente no trabalho, algo sempre ficava no ar juntamente com a preocupação e as perguntas dos colegas. Estava tudo bem, ela dizia. Atendia aos clientes e fazia anotações com a cabeça entre números e dúvidas com direito a uma pausa, doída e absorta entre um atendimento e outro. O vermelho dos olhos era brilhante e já costumeiro. A cada dia havia mais vermelho e menos olhar em seu rosto sisudo.
Chegou então uma data importante. O esperado dia da reunião da equipe para comemorar as metas batidas no mês. Jantar financiado pela empresa, bebida e música ao vivo. Ela queria muito estar presente. Como amava ouvir música sertaneja! Amava a maquiagem cheia de estilo, o batom vermelho e o salto reservados para os momentos de descontração fora da empresa. Até se lembrava que ela mesma era a risada alta e a melodia sedutora de que todos gostavam tanto.
Mas ela não esteve presente. Não aproveitou o jantar, as músicas, e sequer respondeu às inúmeras mensagens daqueles que a esperavam ansiosamente. Descobriu-se no dia seguinte à festa, através da família, que ela agora era nuvem completa, quieta e silenciosa, e que o marido tão amado fora o segredo de sua dor, seu alívio e de sua partida calada. Tinha bebido muito.
Ela amava girassóis e os levou consigo como se levam os segredos confiados para onde quer que vamos. Naquele momento de tristeza, eles foram os únicos que sorriram. Igualmente, foram os únicos que a acompanharam. O resto ela nunca contou.