DEU(S) DE SI

DEU(S) DE SI

Lentamente ela caminhava como se o coração fosse maior que o corpo. Alheada do mundo. Caída numa bússola de agulha quebrada. Volta e meia esmagava as próprias veias. Dor, tosse, dizia “trinta e três” e nem o tango argentino poderia salvá-la. Mesmo moribunda, seguiu. Vitórias em cima de si mesma. Preferiu abdicar do individualismo; contentou-se com a individualidade. Sempre lutava pelos direitos de todos, contanto que não fossem obstinação e não viessem a causar ruptura em ambas partes. A fonte de sua amargura era ser forte.

Sua voz gravitava, engravidava mediante aquele silêncio. Brincou com a cicatriz de suas evasões. Seu subterfúgio era o si-mesmo. Não queria ser mãe, pois sabia que não teria na maternidade o seio que lhe faltou.

Todos estamos numa prisão perpétua chamada morte. Quando dormimos é o momento de licença. Afundamos em horas a fio a fim de termos pequenas vidas. Semeando graças e enraizando desilusões. Nessa espraiada letargia, ficam nossos restos chamados de diário. Quem é esperançoso morre iluminado, feito vagalume. Vagalumeando com seu brilho até o último suspiro. Em chão fértil; as intermitências do sol.

Nessa nascença, velha viveu. Infância infame. A memória pereceu no pouco que amou. Não cumpriu o papel de mulher – parir sorrisos e choros. Expelir um tempo de esperas. A espera de um tempo feito a dois, a quatro mãos, boca, língua, membros...

Toda interioridade nivelada às vicissitudes do externo. Com medo da velhice resolveu viver entre jovens, no magistério. Preocupada com a beleza do corpo – cedeu às academias de ginástica. Sempre mantivera as mãos quentes e os lençóis frios. Ficando bela para si, tornava-se bela pros outros que a olhavam com veemência e isso a incomodava. Cortava o olho dos olhares. Era comum o movimento de suas pernas formadas em cruz – abri-las seria um sacrilégio: se as abrissem poderia parir um mundo. Um mundo desconhecido do qual temia gostar.

Seus porta-retratos possuíam porte ilegal de almas. Mesmo no colorido, a imagem estava morta. Uma noite entre as palmeiras alguém veio tocar flauta no jardim. Uma sombra. Dois caminhos. Cabelos desgrenhados. Uma estrada viva com pés de curupira. Não era mula-sem-cabeça. Era só mula. Caiu o véu. Todos os espelhos em que havia se espelhado se quebraram – restou apenas seu reflexo. Nunca mais servirá a um senhor que sangra.

Leo Barbosaa
Enviado por Leo Barbosaa em 10/06/2021
Código do texto: T7275439
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