Equus asinus sapiens

Trazido bem jovem, não conhecera outra vida além do trabalho. Era um eterno puxar de carroça, carregada de ração para alimentar os frangos da granja, de comedouros, de bebedouros, trabalho sem fim. No verão, havia também a coleta dos cajus. Trabalho dobrado. Nunca vira uma fêmea, nunca experimentara a ventura carnal a que se supunha ter direito. A todos escandalizava quando exibia o enorme membro teso, esfregando-o nas estacas da cerca de faxina até ferir-se.

As surras constantes embruteceram-lhe o coração. Os trabalhadores pesavam a mão no chicote quando o bicho parecia sucumbir ao peso da cargas, deixando-lhe cicatrizes no lombo. A ele fora ensinada a linguagem das pancadas, dos nomes feios. Humanizou-se.

Ficava à espreita, à tardinha e ao amanhecer, no chiqueiro das ovelhas. Tinha aversão a tão mansas criaturas. Foi quando viu uma fêmea em trabalho parto, silenciosa em sua dor. Esperou atento. Mal os borregos saíram do ventre da mãe,  antes da primeira mamada, agarrou um com os dentes e saiu em disparada, para desespero da ovelha recém-parida, que balia em vão. Ainda com o umbigo pendurado, o pobre borrego era jogado para cima e aparado com a bocarra, incapaz de defender-se. Teve ali fim sua breve vida. Escapou por pouco o segundo borrego, quando a infernal criatura se aproximava do chiqueiro para impingir-lhe hedionda tortura. Os gemidos da ovelha acordaram o morador, que veio em seu socorro e levou o bicho ruim para longe, amarrando-o, daquela noite em diante, no tronco de um cajueiro. Não passaria mais as noites solto, depois do primeiro crime.

Passou a odiar a todos com mais intensidade, sobretudo as crianças, cuja alegria lhe era ofensiva. Brincadeiras, risos e travessuras não faziam parte do mundo a que pertencia. De primeiro, aproximava-se a observar, murchando as orelhas, com a respiração entrecortada. Não era suficiente, porém. O sangue reclamava uma desforra à altura do que mereceriam seus algozes.

Naquela infeliz tarde, uma das meninas brincava sentada na areia do terreiro. Com a cabeça baixa, olhos postos na boneca de cabelos de barbante, não pressentia o perigo que lhe rodeava. Embalado numa carreira medonha, o animal mordeu-lhe na cabeça, arrastando-a pela estrada de pedrinhas. De longe, via-se o pequeno corpo arremessado no ar, tingido de vermelho, e logo pisoteado pelos afiados cascos do jumento assassino. Os homens correram no seu encalço com pedaços de pau, mas nem as fortes pancadas aplacaram a fúria da bestial criatura, que erguia com os dentes e esmagava com as patas a infeliz criança.

Um tiro de espingarda certeiro pôs fim ao espetáculo dantesco. Só se ouviam gritos de mulheres diante dos dois corpos ensanguentados que jaziam no chão.

Miss Araújo
Enviado por Miss Araújo em 09/06/2021
Reeditado em 07/10/2021
Código do texto: T7275265
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