A LEMBRANÇA QUE REVOLTA
Sentado na sua cadeira de balanço, na varanda ampla, vendo o dia romper, com o canto dos pássaros na arraiada bonita, José toma o café sem açúcar e nem sequer leite, contraindo o semblante enrugado, na amargura do líquido quente. Passara a adotar tal prática quando foi consultar-se com o seu médico, constatando-lhe a diabetes descontrolada, com esta recomendação:
- E preste atenção na sua dieta. Não exagere no arroz, para não ser vítima da hiperglicemia perigosa!
E vai sorvendo o café, com a bolacha na outra mão, lembrando-se do crime da Baronesa de Grajaú, para sempre guardado no seu mundo de lembranças, a título de ódio, revolta e indignação.
Tinha 22 anos, trabalhava no centro histórico de São Luís como funcionário público, na Biblioteca Benedito Leite, e sempre saía de casa de manhã cedo para regressar tarde da noite, encontrando um ou outro transeunte nas ruas desertas, com a audição inclinada à captura das canções nos pianos mal tocados, nas noites de plenilúnio, quando a lua se arqueava sobre a cidade adormecida. Por esse tempo, corria na cidade o boato da morte do menino Inocêncio (a que José não deu importância), de nove anos de idade, vítima de sevícias e os maus-tratos, no transbordamento da raiva de Ana Rosa, despejando-lhe a chibata nervosa na pele juvenil dilacerada pelas pancadas cortantes. José indignava-se sempre que lhe voltava à imaginação as cenas desse crime, pungindo-lhe, torturando-o, sempre a pensar nas dores da criança assassinada:
- Até quando, Meu Deus, teremos tanta injustiça no mundo? Parece que voltamos ao tempo de Sodoma e Gomorra!
E, agora mesmo, esta lembrança aflora-lhe à consciência, a ponto de lhe dar impulso trêmulo das mãos, deixando o copo de café derramar-se sobre as tábuas do chão. Chama por Raquel - uma mulher sensual, linda, com uma atração divina nos olhos verdes, os quadris bem feitos -, que logo lhe atende ao chamado:
- O que foi papai? Não me diga que se está a lembrar do menino Inocêncio...?
E confirmando a adivinhação da filha:
- De novo minha filha. Aquela desgraçada, infame, iníqua, não podia fazer o que fez com o meu sobrinho! Até quando meu Deus, eu viverei nessa provação?
E José, tentando explicar-lhe a história do tal sobrinho, depois de deixar o copo de café vazio sobre a mesa à sua frente:
- Não é bem assim, Raquel. Nunca presenciei o crime e nunca conheci a tal da Ana Rosa. Falo que o Inocêncio era o meu sobrinho para aumentar a minha súplica patética, pedindo a Deus que tenha piedade de nós. Aqui, neste mundo cruel, há muita injustiça, crimes, desatinos. Acho que estou sobrando no mundo. Essa Ana Rosa matou o Inocêncio, com o crime comprovado pelo corpo de delito, mas foi absolvida pelo corpo de uma sociedade aristocrática e cúmplice desse tipo de atrocidade, diante do público, por unanimidade, defendida pelo Dr. Paula Duarte, com o Tribunal ingurgitado pelo povo ansioso pela imposição da justiça sobre a velha, garantindo-lhe galés perpétuas. Mas tudo foi contra a ordem e a justiça. Tudo o que lhe conto consta no livro Os Tambores de São Luís, e tudo isso foi verdade. Li esse livro quando jovem, e reitero que o menino era o meu sobrinho para que o Pai Eterno esteja mais perto de mim e tenha piedade e misericórdia de todos nós. Incorporei toda a história desse livro na minha memória. E falo nas datas para esclarecer a minha experiência com esse crime.
A filha, como absorta pelo depoimento do pai, tenta voltar à tona de si mesma, como se uma dúvida lhe estivesse causando uma agonia interior.
- Mas pai e por que ficar preocupando-se com tais histórias anacrônicas, que não mais nos ajudam no mundo presente?
O velho, como espantado pela pergunta da filha, embaralhando-se na resposta, solta uma tosse seca, no concerto da garganta apertada, enquanto observa a ansiedade nos olhos da filha atarantada, e diz-lhe:
- Minha filha, os meus livros sempre foram razão de muito cuidado e dedicação, pois eles me transmitem um motivo a mais de viver, de amar, de encarar o mundo que foi enfrentado pelos autores que os escreveram, sendo testemunhos do tempo e da sociedade. Essa Ana Rosa matou o Inocêncio a sangue frio, com toda a força e frieza de que era capaz, acertando-lhe uma punhalada certeira, batendo-lhe mais até não sentir-lhe a respiração da vida. Essa desgraçada e desalmada!
José, contraindo-se na revolta da lembrança pungente, diz à filha que faça a sua merenda das dez horas, conforme a recomendação do prestimoso Dr. Wellington.
Raquel, voltando daí a pouco, com a bandeja de frutas frescas para o lanche do pai, para, subitamente, na sala de visitas, pensando que talvez estivesse sendo substituída pela lembrança que o pai guardava do menino que foi morto pela tal da Ana Rosa, com o crime comprovado pelo corpo de delito, e absolvida, por unanimidade, e ela conjecturou que, realmente, a vida é para quem tem pegadas de boi, quanto mais poderes um poderoso exerce sobre a sociedade, mais vigoroso ainda será o esmagamento daqueles que não têm como se safarem dos desatinos, na segregação estrutural dos menos favorecidos. E lembrava-se da leitura do livro Machadiano, Quincas Borba, na parte que o Quincas, o ser humano, contava a Rubião, a moral da Humanitas: “Ao vencido, ódio ou compaixão, ao vencedor as batatas”, corroborando a ideia das pegadas de boi que se materializava na sua consciência.
Voltando à tona de si mesma, encaminha-se em direção a José. Deixa cair das mãos trêmulas a bandeja de frutas frescas, solta um grito desesperado e encontra o pai com os olhos arregalados, com a língua imóvel para fora da boca, e, às pressas, corre para ele, sacudindo-lhe pelos ombros, adivinhando a hiperglicemia fatal. E mais uma vez, afastando-se do corpo, reconhecia a revolta do pai e a sua indignação diante da sociedade má e injusta, e afirma que a vida é para quem tem pegadas de boi, lembrando-se do Crime da Baronesa de Grajaú, com que o pai se revoltava e maltratava-se, e pensa, com o batimento acelerado do coração:
- A lembrança desse crime revoltou bastante o meu pai e a mim também, crispando-lhe as mãos ossudas, indignando-o! Esse crime para sempre ficará na minha lembrança, também, como revolta e indignação diante dessa sociedade má e injusta, a despeito de não lhe ter dado atenção devida. O homem, “sempre sendo um cadáver adiado”, nunca criará juízo?