A solidão no passado
A enorme residência de Pierre fazia parte de um quarteirão de casas antigas, bem construídas e emolduradas por lindos jardins.
Eu era pequena e, quando passava por lá, sempre questionava o porquê de Pierre ser um homem tão estranho. Já devia ter mais de oitenta anos e raras vezes sorria. Fora professor de história em uma famosa universidade americana e, quando da sua aposentadoria, resolveu retornar ao Brasil para “guardar” o que lhe coube: o quarteirão de casas, todas cuidadosamente mobiliadas com mobília antiga, mais de cinco mil livros, árvores centenárias e um tanto de solidão.
Seu pai foi desembargador e sua mãe juíza. Ele, o único filho. Não restara nada a não ser imóveis, dinheiro, muito dinheiro, ele e seu passado, pois do presente ele não entendia nada.
Foi para os Estados Unidos muito cedo e, como era muito focado nos estudos, teve somente uma namorada. Por ela se apaixonou, mas acabou perdendo-a com o tempo, possivelmente em função da sua obsessão por aquele amor que ele desejava para sempre. Depois da sua partida infiltrou-se nas suas lembranças e, aprofundando-se cada vez mais na história, passou a viver um passado que o absorveu por completo.
Aninhou-se no seu mundo de tal forma que até com os pais, quando os visitava no Brasil, tinha dificuldades de convivência.
Não viu a virada tecnológica nos anos 80, não engajou-se em nenhuma tendência política, não viveu uma revolução de cores e sabores que se deu em tão pouco tempo. Enfiava-se nos livros e pesquisava fatos passados com sofreguidão. A árvore genealógica da sua família era constantemente atualizada.
Com a chegada da pandemia em março de 2019 “sentiu-se em casa” e só saiu naquela tarde, se eu não me engano, 13 de março deste ano. Em frente ao portão, com os olhos baixos e um leve sorriso, presenteou-me com um chocolate, murmurando para que eu não ficasse com medo, pois já havia feito as duas doses da vacina.
Talvez tenha começado a viver alí, pois a partir daquele dia eu o via diariamente regando o jardim.
Escrito na Oficina "Provocações" - Editora Pragmatha - Módulo 04