Uma vida sem razão

Beth pareceu-me triste naquela manhã. Em pleno inverno rigoroso resolví visitá-la. Era minha amiga de vida. Crescemos na mesma cidade, estudamos na mesma escola, debutamos no mesmo clube e nossos pais eram muito próximos.

Na verdade a tristeza da Beth não me tocou com surpresa. Me parece que a tristeza sempre a acompanhou. Eu nunca a ví dando uma gargalhada ou mesmo rindo de alguma bobagem que tenha feito. Beth sempre foi pessoa “reta”, cheia de princípios e regras. Literalmente nunca transgrediu em nada. E assim eu acabei acostumando com as suas facetas tão diversas das minhas.

A visita se deu porque, nos últimos meses, ela não mais respondia aos meus apelos, tanto por telefone quanto whatsap. Estranhei muito e, embora tivesse notícias suas através de sua prima, pressentí que algo não andava bem.

Beth sempre foi ótima aluna, ótima filha e ótima amiga; mas nunca a ví sendo uma ótima namorada, uma ótima esposa, uma ótima amante. Penso que a sua retidão a impedia de sair do seu círculo tão bem traçado. Estava com 52 anos e, naquele dia, vendo-a com os cabelos brancos cintilando com o sol que batia na mesa de café na varanda da sua pequena casa, pude sentir que estava infeliz.

Morava sozinha em uma pequena chácara desde que se aposentou, quando já tinha perdido os pais. Foi secretária executiva por longos anos e, após graduar-se em direito, engajou-se em um escritório de advocacia, onde desempenhava funções administrativas e, em paralelo, trabalhava em causas cíveis, as quais passava para um colega assinar, pois não logrou êxito na única prova que fez na OAB. Certa vez confidenciou-me que sentia-se fracassada e, a partir dalí, nunca mais tentou, alegando que o seu cuidado com os pais lhe tirava tempo demais e, consequentemente, não conseguia estudar. E assim os anos foram passando.

Naquela tarde a ví com olhar vago, sem cor. Até mesmo a roupa me pareceu antiga, no tempo e na moda. Perguntei à ela a quem recorria quando precisava de algo. Respondeu-me que à vizinha, também uma mulher sozinha como ela. Pelo visto as duas ajudavam-se mutuamente. Perguntei pelos irmãos - tinha um irmão e uma irmã. Respondeu-me que o irmão trabalhava muito e, envolvido demais com a família, tinha pouco tempo para vê-la e a irmã tinha se mudado para o Nordeste com o novo marido e a filha, já adolescente. Foi quando eu perguntei à ela porque então ela não os procurava. Com olhar sofrido e voz baixa declarou: “estou tão bem aquí que não sinto falta de ninguém”.

A incoerência da sua resposta, misturada com a ausência do meu entendimento apressaram-me para pegar a estrada. De nada adiantaria ficar mais tempo alí. Ela não sentiria a minha presença. Ela nem sequer percebeu que eu aparecí porque estava preocupada. Pela breve conversa deu para sentir que ela acusava o seu destino a tê-la colocado alí, sem grandes recursos, sem família, sem amigos. A vida tinha sido injusta com a sua luta, uma luta difícil de entender, porque nunca houve movimento.

Foi preciso mais de meio século para eu entender que o que nos unia era única e exclusivamente a nossa proximidade física.

Já era tarde para eu ajudá-la a mudar. Nossa amizade estava empobrecida com olhares para caminhos diversos. Eu, naquela tarde, cansei de Beth.

Pela primeira vez a sua retidão me chocou.

Eu a desconhecia.

Escrito para a Oficina "Provocações" - Editora Pragmatha - módulo 04

Rosalva
Enviado por Rosalva em 08/06/2021
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