A beleza de Ni

A beleza de Ni

Quando tia Ni veio morar com a gente ninguém gostou. Ela era velha, mas se achava menina. Ficara louca ainda criança. Minha vó falava que ela recebera uma ventania na cara; tio Du dizia que ela tomara um choque quando encontrou tio Januário morto, pendurado no pé de braúna, quando voltava da escola. Dizem que esse tio gostava muito dela.

Tia Ni ficava sozinha num quarto escuro. Acordava no meio da noite e andava por toda a casa. Um espelhinho e um batom eram seus companheiros. Admirava os lábios coloridos. “Sou bonita demais, né Railda”, perguntava à minha vó, que dava risada. Todos sabiam que ela era muito feia. Dava pena: louca e feia. As duas tinham quase a mesma idade, tia Ni um pouco mais nova. “Para de ficar se emperiquitando, Ni?”. “Você fala assim porque não é moça nova como eu”. Parecia uma menina. Vaidosa e perfumada a alfazema. Seu banho era um ritual demorado. Usava creme de babosa nos cabelos. Os vestidos revelavam, de tão curtos, acima do joelho, a anágua de borda florida. “Railda, você queria ser bonita assim como eu?”. “Oh, cavala besta, onde tá a beleza aí?”. “Você sempre foi invejosa, Railda”, sentenciava tia Ni. Minha vó ria às vezes dessas besteiras; outras ficava com raiva.

Tia Ni era um fardo. “Dá trabalho igual criança, Elza”, confidenciava minha vó à outra irmã, que nos visitava de vez em quando, mas não queria saber de tia na casa dela. Quando parava na frente da televisão, todo mundo gritava com ela. “Sai daí, tia Ni”. Ela pirraçava. Dava vontade de bater nela. “Não tem muita mulher bonita nessa novela, né?”. Falava isso e se afastava olhando no espelho em tempo de tropeçar e cair. Gastava muito tempo sob as mangueiras. Pegava de solavanco o espelho e deitava de costas, olhava ora o céu, ora o seu próprio reflexo, descobrindo outros ângulos, explorando cada pedacinho de seu rosto. Os olhos brilhavam, segurava uma lágrima de alegria a caminho e gritava lá de fora: “Raiiiiiiiilda, meu nariz combina tanto com meu queixo, não acha?”. “Oh, cavala besta! Por que não vem me ajudar?”, indignava-se minha vó. “Essa Ni é morta na preguiça”.

Qualquer assunto que não fosse sua beleza era um tédio para tia Ni. Adorava ficar na janela se exibindo para as pessoas que passavam pela rua.

Gostava de meu amigo Henrique, de treze anos. “Acho que ele gosta de mim, já passou três vezes me olhando”. Minha vó costurando, apenas balançava a cabeça, como todos nós. A gente já entendia. “Railda, meus vestidos estão muito antigos, preciso de roupas novas”. “Só se comprar com a correia do saco”. Embora minha vó fosse muito direta com tia Ni, ela nem escutava. Só lhe importava seu espelho, seu batom e a alfazema que empestava a casa.

Num esbarrão em seu Raul, bem na calçada, o acidente: seu espelho vermelho, de florzinhas douradas, espatifou no chão. Estilhaçou. Tia Ni ficou desolada. Minha vó comprou outro espelho do mesmo tamanho. Mas ela não gostava, dizia que aquele espelho a deixava feia. Minha vó segurava e dizia que estava igual. Assegurava que a imagem era verdadeira. Mas tia Ni não acreditava. Chorava seu espelho de volta. “Por que você quebrou?” “Agora sou feia”. Levou-a a várias lojas para ela mesma escolher outro, mas todos os espelhos deixavam tia Ni feia. Experimentou um monte. Chorava sua feiúra. “Como posso viver sem ser bonita, Railda?”. Não andava mais pela casa. Ficou no canto da parede com os olhos tremendo e as mãos na boca. Sem batom. Eram inúteis as tentativas da minha vó: “Vem, Ni, ver televisão”. “Embaixo da mangueira tá tão limpinho, Ni”. “Os meninos estão descendo da escola, Ni”.

Minha vó colou todos os pedacinhos do antigo espelho, mas não adiantou. Eram tristes as lágrimas da tia entrando nas fendas, coladas. Seu rosto estava em pedacinhos. “Tá bonita, Ni, não mudou nada, né João?” Eu balançava a cabeça que sim.

Numa dessas noites, alcançou um galho de braúna que pendia perto de sua janela, amarrou um lençol em seu pescoço e pulou. Deixou um pequeno bilhete em garranchos. “Vou encontrar tio Januário. Depois que pegar outro espelho com ele, eu volto, viu”.

Alex Ferraz II
Enviado por Alex Ferraz II em 04/06/2021
Código do texto: T7271433
Classificação de conteúdo: seguro