A Caridade

A Caridade

“Eu não dou esmolas. Não sou pobre o bastante para isso”.

-Friedrich Nietzsche

-Não, obrigado.

Aquelas malditas palavras expelidas por aquela boca desdentada fedendo a cachaça, ressonavam na alma do Doutor Alberto Albuquerque Galvão Andrade. Como ousa? Um baú de mais de cem anos, peça única, pertenceu a minha avó ... .e ... .aquele…aquele mendigo recusou!

Essa gente. Doutor Alberto olhou o quadro pendurado na parede oposta à televisão. No quadro estava a velha, sua avó, com longos cabelos brancos e cara sisuda - típica bruxa má de contos infantis - cercada pelos netos. Um deles, um gordinho com cara de bobo, era o próprio Doutor Alberto com oito anos. Infância feliz: curso de inglês, viagem para Disney, natação, melhores colégios. Aquele apartamento havia sido da velha de cara sisuda, e quando morreu, Doutor Alberto não demorou muito para, junto com a esposa, instalar-se no lugar em que sua avó passara os últimos anos de uma vida excepcionalmente longa. Junior, seu filho, nascera justo no primeiro ano em que eles abandonaram a confortável casa no subúrbio pelo apartamento bem localizado perto do shopping.

Os primeiros meses no novo lar foram de grande trabalho, pois ainda não era um lar, era tão somente o apartamento d’avó. Pintou as paredes, arrancou o carpete, derrubou uma parede para deixar a sala maior, tirou as barras de apoio do banheiro. Depois foi se livrando das quinquilharias da velha: louças, roupas, uma cama, álbum de fotografias. Por algum motivo o baú havia sido poupado. Aquele móvel antiquado, carcomido pelo tempo, era então a única testemunha de que a avó havia existido em um passado que se fazia ano após ano cada vez mais distante e olvidável. Quando, por fim, Doutor Alberto decide livrar-se do móvel fazendo uma boa ação, o mendigo, aquele mendigo que vive na esquina, se é que essa gente realmente vive, recusou a caridade. Um baú tão bonito ...e o mendigo disse “não, obrigado. Não quero não, obrigado”.

Doutor Alberto nem se preocupou em ver o que havia dentro do baú, a verdade é que as porcarias que haviam sido os tesouros da velha lhe davam náuseas, e entendia que tampouco seria do interesse do mendigo. Mas a madeira era de boa qualidade, além disso, eu estou te dando algo que é meu. Não, obrigado.

Como ousa não aceitar o baú que fora de minha amada vó, como ousa não desejar algo que pertence a mim? É um mendigo, um mendigo sujo, olha, te ajudo, te dou o baú. Cavalo regalado não se olha os dentes. Você acha que é melhor que eu? Não quer minhas coisas? Eu tenho berço. Eu tenho berço, porra! O mendigo não tem no cu nem o que a mosca gosta de comer.

-Não, obrigado.

Lurdinha bateu na porta. A empregada avisava que tinha terminado a faxina e iria para casa. Doutor Alberto tinha certa afeição à Lurdinha, que trabalhava no apartamento há muito tempo, desde a época em que a avó era viva e única residente do lugar. Lurdinha era preguiçosa? Sim, isso era. Lurdinha roubava Danone da geladeira? Sim, isso também era verdade. Mas isso não era culpa de Lurdinha. A avó havia acostumado mal a empregada, e com essa gente não se pode dar moleza. Pau pau, pedra pedra! Pensou em oferecer o baú para Lurdinha, mas e se ela dissesse “não, obrigada”? Com que cara poderia olhar para a empregada depois que essa também se recusasse a receber sua caridade?

Lurdinha e o mendigo tinham o mesmo cheiro. Cheiro de merda e mijo, baratas e ratos, cheiro de podre. Cheiro de miséria, cheiro de rua. Doutor Alberto cheirava bem. Doutor Alberto morava no vigésimo andar. Longe do chão, perto de Deus. Isso acreditava até ontem. Não, obrigado.

Lurdinha deu seu último tchau desajeitado, abandonava o apartamento. Viu-se sozinho. Pobres que não têm o nosso privilégio. Ouvia isso desde criança, e como adulto não hesitava em repetir essa máxima para Junior, quando, com o filho no Renault Fluence Dynamique, paravam em algum cruzamento e viam a quase pitoresca miséria que havia no mundo. Eles não são abençoados como nós. Benção o escambau. Enquanto ele se enchia de piedade, os miseráveis ridicularizavam-no. Todos seus bens eram tão somente porcarias. O mendigo não aceitou o baú, seguramente não aceitaria o apartamento, o carro, Lurdinha, Junior ou mesmo a esposa.

-Não, obrigado. Porra!

Doutor Alberto coçou a barba. A esposa logo voltaria da yoga, Junior da escolinha. O lar estaria mais uma vez completo. Jantariam pizza. O casal apreciaria um bom vinho chileno, a criança Coca-Cola.

Doutor Alberto olhou pela janela. Em algum lugar, lá fora, estava a UMESP onde se formou em odontologia, a avenida Kennedy com seus bares, onde conheceu a esposa, o cinema em que deram o primeiro beijo enquanto fingiam assistir Shrek. Esses lugares que contavam sua história, estavam bloqueados por dezenas de edifícios, exatamente iguais ao que ele vivia, que eram cada vez mais numerosos no centro da cidade. Sentiu-se sitiado por aqueles medonhos gigantes de concreto armado, que de tão altos, pareciam espetar o céu que sangrava. O poente de um vermelho bem vivo que nunca chamara a atenção de Doutor Alberto, pouco dado às divagações do ócio, inundaram seu espírito de homem ferido.

O baú sorri para ele. O mendigo debocha. Não, obrigado. Mas veja a madeira. Não, obrigado. Você não está entendendo, estou te dando. É uma caridade. Não, obrigado. Olha, eu te dou o baú mais cinquenta reais. É seu, pode levar. Não, obrigado. Não, obrigado. Não, obrigado. Não,obriiiiiiigaaaaaaaaadooooooooooooooooooooooo…………………………….

***

No prédio em frente, no apartamento 24b, Dona Alcira apreciava o pôr-do-sol e teve tamanho choque quando viu o suicida cortar a tela, lançar-se ao vazio e esborrachar no chão, que perdeu para sempre o dom da fala. Com exceção da contadora aposentada, as outras duas testemunhas permaneceram mais ou menos indiferentes ao ocorrido.

A primeira, Lourdes Batista Araújo, 54 anos, empregada doméstica, aguardava o ônibus 245 no ponto em frente ao prédio do morto, quando se deu o ocorrido. Lurdinha, como prefere ser chamada, alegou que o suicida era pessoa de muito estranha conduta, diferente de sua antiga patroa. “A Dona Orleana era muito gente fina”. A outra testemunha, um morador de rua conhecido pela alcunha de Milionário, viciado em crack e tuberculoso, disse que o suicida era pessoa de más intenções, que semana passada ofereceu-lhe um baú cheio de barras de ouro - que valem muito mais do que dinheiro - e esse recusou prontamente a “caridade”. “Quando a esmola é demais, o santo desconfia”.

Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 04/06/2021
Reeditado em 04/06/2021
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