PRIMAVERA NA CAVERNA

PRIMAVERA NA CAVERNA

O mundo foi roubado daquela mulher que procurava um homem que a inserisse no mundo, como se fosse dele o ofício de gestar cada gene de sua alma. Destino de quem põe a reza num senhor morto. Alguém que tem broa de milho como prato preferido não pode querer mais que isso.

Era uma senhora escanzelada. Todo dia fazia sua caminhada, vagarosa como o sereno. Braços longos de tanto se alongar. Apesar de gostar muito de comer, temia a gordura. Tinha horror à gente gorda. Achava que a vida só era leve se fosse magra. Odiava dias de chuva, pois isso implicava nos seus passeios matinais. Então, para não engordar, passava o dia todo trancada numa sauna natural que havia em seu apartamento.

Punha meias nos pés e livros nas mãos. Revezava-se e reservava-se vendo programas culturais na TV e filmes de todos os gêneros, inclusive os pornôs, e não tinha pudor, afinal quem iria observá-la, além dos escritores que ficavam empilhados atrás da porta da sala? Eram vários livros amontoados naquele ambiente que cheirava a naftalina e mofo. Apesar do mau cheiro, era um lugar límpido, organizado e com vários penduricalhos na parede.

Artesanar era uma arte quotidiana – da cozinha ao banheiro. Sabia que a vida sem apetrechos não era digna de elogio – “A vida é para cozer e coser, mas deve ser no ponto para não ser queimada nem desalinhada”, dizia.

Em poemas esbanjava suas razões, embora sempre os colocassem em gavetas. Era uma confidente de si mesma. Confinava as dores nas pontas dos pés e as delicadezas nas palmas das mãos. Sabia que escrever era uma forma de desnudar-se. Não, até aceitaria tirar a roupa em público, mas despir a alma só por cima de seu cadáver.

Tardes e tardes a fio passava em sua cadeira de balanço. Colhia flores perto do mar. Mas, quando chegava a casa, deitava-as no portão. Era inadmissível ver morrer um corpo num copo, mas foi num copo de vinho que essa mulher se afogou. Cada gota um litro de sangue. A morte não é bebida; bebe. Sobre o véu do seu sorriso havia satisfação. Alguma água sentiu saudade de um rio que nunca passou...

Depois de um tempo, alguém abriu os seus livros e viu que em cada um havia uma rosa. Se não murcha, desenhada. Seria isso a tradução de um luto ou a veneração de um encontro que sempre se renovava?

Leo Barbosaa
Enviado por Leo Barbosaa em 02/06/2021
Código do texto: T7270019
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