AH! CAMPEÃO! AH! CAMPEÃO!
Aquele dia tinha tudo para ser como os outros: chegar, comer às pressas e sair correndo de volta ao trabalho; e depois, ficar trabalhando até oito ou nove horas da noite.
Era o que eu fazia todos os dias. Saia cedo, sempre antes das sete horas da manhã (às vezes, até antes das seis) – madrugava no trabalho! –; e chagava para o almoço por volta do meio dia. Comia apressadamente – engolia a comida! – e já estava de volta ao trabalho.
As reclamações eram bastante. “Marido ausente!” “Pai desnaturado!” “Homem frio!” E por aí afora. Eu, na minha defensiva, argumentava que o trabalho era o nosso ganha-pão; era necessário o sacrifício.
No trabalho, entregava-me de corpo e alma aos afazeres do departamento, sempre buscando mais e mais obrigações. No mais, fixava a cara na tela do computador e, de forma mecânica, ia triturando a pauta do expediente. Quando não era isso, dava-me todo à mesa de trabalho que sempre estava entulhada de papéis diversos. Sentava-me e, de um jeito introspectivo que o tempo foi moldando em mim, devorava os relatórios e os demais documentos; lendo-os, apontando-os, justificando-os e assim.
Pouco falava.
Os companheiros da repartição, às vezes, até arriscavam um assunto: comentavam dos gols e da boa fase do São Paulo F.C. Eu concordava, gesticulando a cabeça ou soltando meia dúzia de palavras. E era o bastante.
Às vezes, andando pelos corredores, ouvia – de uma boca ou de outra – que os chefes haviam ditos: “O Fernando, sim, é um grande funcionário!”; ou então: “Esse menino tem futuro!” Mas, nem isso me puxava para as rodinhas de bate-papo. No fundo, sabia a razão dos elogios. Contudo, ia me entregando mais e mais ao trabalho. Não para ser o queridinho dos chefes, que isso pouco ou nenhum prazer me dava; mas, como se eu quisesse estar ocupado todo o tempo possível, e, assim, tirar da minha mente o direito de ociosidade.
À noite, quando retornava para casa, geralmente, as crianças já estavam dormindo ou recolhidas ao quarto. Não tinha o hábito de ir vê-las. Chegava, colocava a pasta na escrivaninha da saleta, tomava um banho de uns quinze minutos, vestia um roupão e, enquanto lia algumas páginas de um dos meus Jane Austen, bebia duas ou três taças de vinho, pitando um cachimbo com fumo de chocolate. Era o único momento em que fumava, bebia e me dava à leitura não oficial. Com isso, matava bem umas duas horas. Não coloco aqui deleite; não o tinha! Antes, fazia maquinalmente, como se fosse um prolongamento do meu ofício diário.
Recolhia-me pelas onze horas da noite. Já estas horas Joana estava dormindo. Também eu, ajudado por Dionísio, me entregava a Morfeu.
Mas naquela terça-feira aconteceu algo que me tirou do sério.
Tinha acabado de almoçar, escovado os dentes e estava saindo, quando vi em minha frente dois olhos brilhando. Aquilo foi como se fosse a muralha da China. Um verdadeiro exército fortemente armado diante de mim. Dois pés plantados na soleira da porta da sala. Dois pequenos pés! E deles subia um corpinho meigo e angelical do qual ainda não tinha me dado conta. E no topo deste, um rosto resplandecente. Daquele rosto ovalado e pequeno, cuja extremidade superior era juncada de cachos de ouro caindo, nasciam duas fontes jorrando vida. Eram duas jabuticabas maduras! E elas tinham mais doce do que todo o mel que alimentou João Batista, no deserto.
Fiquei ali parado um instante sem fim, bebendo o sorriso que tomava conta das linhas definidoras daqueles lábios pequenos. A bem da verdade, foi rápido esse espaço de tempo; eu, sim, fui me enfiando numa eternidade de sonhos. Como se os meus olhos cegassem-se e alguém colocasse duas novas lentes, bem mais potentes, no lugar deles: abriu-se diante de mim a porta da esperança! O que eu estava vendo era inacreditável!
O forte impulso que me fazia ir ao trabalho – que me escravizava de forma brutal –, não foi capaz de articular os meus membros inferiores na direção da empresa. Minhas pernas se fizeram duas varas verdes ante a um vendaval. Não tive ação de dar um passo, se quer. Parado, como estava, fiquei, contemplando o sonho de uma vida inteira.
Se alguém mirasse meu rosto naquele momento, diria:
– Fernando, não chore!
E penso que estava sendo vigiado, e que, de fato, falaram: “Fernando, não chore!” No entanto, eu não ouvi. Talvez até tenha sido outra, a frase... Talvez o diálogo se fez mesmo pelo silêncio, que fala com mais acerto. Mas, cego que estava, também surdo me fiz. Deixei-me ficar ali perdido, naquele instante pequeno e eterno ao mesmo tempo.
E naquele momento o choro veio à minha face.
Não foi um chorar copioso; quatro ou cinco lágrimas brotaram nos meus olhos secos e correram rosto abaixo. A fonte delas era o coração, que batia descompassado por uma felicidade até então malograda pelo destino.
– Pai, vão jogar bola!
Foi a única frase que consegui ouvir. Ela saiu daqueles lábios pequenos e foi iluminada pelas luzes daqueles olhos negros e brilhantes.
Guilherme contava cinco anos incompletos. Quando nascera, como todo pai, imaginei que seria jogador de futebol. Corri, comprei o uniforme do tricolor paulista e uma bola da marca Topper. O uniforme ele usou; a bola ficou guardada no armário.
Aos três meses de vida ele fora acometido por uma enfermidade nas pernas que o transformaria numa criança especial. Foram quatro longos anos indo atrás de especialistas. Ortopedia, fisioterapia... tudo sem muito resultado. Com o tempo, fui me desgostando; deixei o tratamento a cargo de Joana e me entreguei ao trabalho.
A descrença na medicina e o descontentamento com o destino haviam cegado meus olhos. Não percebi que o Guilherme estava andando.
Naquela tarde, ele estava com a bola que eu havia comprado nas mãos. Jogou-a no chão e, com três passos firmes na minha direção, deu-me um abraço de gigante.
Não voltei ao trabalho. Pus calção e camiseta e passei a tarde chutando bola com o pequeno. Quando deram com minha falta na empresa, ligaram para saber o que tinha acontecido; mas Joana, que era a felicidade em pessoa, inventou uma desculpa.
Naquela noite não li, não me entreguei ao vinho e nem ao cachimbo. Passei, sim, uma boa parte da noite brincando de carrinho com o Guilherme. E no outro dia, de manhã, cheguei ao trabalho por volta das oito horas e quinze minutos.
Antes de sair de casa, fui ao quarto das duas meninas e beijei-as, carinhosamente. Depois, fiquei um bom tempo no quarto do pequeno, admirando-o enquanto dormia. Dei-lhe um estalado beijo na testa e fui saindo devagar. À porta do quarto, exclamei, sorrindo por dentro:
– Ah! Campeão! Ah! Campeão!