Conto de infância: Criança que mente vai pro inferno (*)
 
Olha com carinho a fotografia. Nenhum outro sentimento em especial. Está ali entre o pai e a mãe, entre a disciplina rígida da mãe e a disciplina dos homens de outra época. Era um menino que gostava de doce e colecionava papéis de bala. Hoje, só guarda lembranças. O pai nunca o castigou, exceto uma vez. Olha a fotografia, escreve, viaja no tempo.
 
Pai e filho voltam de um passeio. Rua poeirenta. O garoto corre à frente. Pressa. Há muito que contar.
 
– Mãe, comi doce com colher, papai comeu com garfo. Pai, era doce de quê?
 
– Não sei.
 
O pai responde contrariado. Exageradamente carinhosa, a mãe quer saber do doce. Curva-se, faz balançar a pequena cruz dourada que pende sobre o peito e põe o filho no colo. Criança que mente vai pro inferno, o menino sabe, olha a cruz. Difícil explicar tudo. O caminho, a casa de alpendre, o doce, o gatinho que arrepiava o pelo. E a mulher bonita que fez o doce.
 
De repente, a mãe não quer ouvir mais nada. Varre depressa a casa e bate o cabo da vassoura contra a parede atrás da porta. Tem andado triste. Pai e mãe brigaram. Até pararam de fumar. Desde então, o menino também não ganhou mais cigarros de chocolate. O pai disse que não fabricavam mais chocolate com a forma e a embalagem de cigarro. E assim, todos na casa ficaram mais tristes, sem cigarros.
 
Ainda na mesma tarde, o silêncio das pessoas. Só o barulho de coisas. No quintal, o machado tira lascas de lenha. Na cozinha, batidas de colher na borda da panela, gravetos estalando no fogão de lenha, gordura chiando na frigideira. Um prato cai no cimento vermelho. Prato esmaltado, quando cai, não se quebra; mas fica nele o descascado escuro a lembrar que um dia caiu – o menino conclui. A mãe enxuga, com as costas da mão, o rosto molhado. O ar enfumaçado faz arder os olhos. O pai entra na cozinha trazendo lascas de lenha e ordena ao menino – vamos até a venda.
 
A venda tem pinga. E balas em grandes vidros. O pai, à frente, apressado. Lá pela metade do caminho puxa firme o braço do menino, olha de novo a rua deserta, e pega no chão um pequeno galho fino e seco. O menino, coração descompassado, vê a rua deserta – os meninos da rua não saberão de nada – ainda bem. Vento frio. O bambuzal que ladeia a rua balança com estalidos. Os fantasmas da noite, os guardiões dos mistérios e segredos do mundo, se irritam quando suas leis são violadas. Tudo por causa daquele passeio e o doce com colher. Visitaram duas casas. Aquela de alpendre era segredo para a mãe. Castigo de vara em três tentativas. As duas primeiras mal atingem as pernas, e a última apenas resvala na roupa. Isso é pra você deixar de ser enredeiro – o pai fala, soltando o braço. O menino não quer chorar e tenta transformar o rosto em estátua. Voltam devagar para casa. Lentamente a escuridão abre uma fenda no tempo e transforma três pessoas em fotografia.

 


(*) Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência. (O Autor)
 
Itamar BC
Enviado por Itamar BC em 29/05/2021
Reeditado em 30/05/2021
Código do texto: T7267066
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