Não Podemos Ser a Nossa Própria Prisão
Às vezes perdemos tempo com discussões bobas, desentendimentos infantis, mágoas que não nos levarão a lugar algum. Aliás, o pior erro que alguém pode cometer é o de dar ouvidos ao próprio orgulho e se privar de viver aquilo que tanto deseja deixando para trás os mal entendidos e buscando seguir em frente da forma mais tranquila possível.
É uma pena que não tenhamos esse pensamento dentro de nós.
Era uma pena que Jeferson e Denise não olhassem para os bons momentos que juntos compartilhavam e se atentassem apenas ao calor dos momentos e às falas não desejadas.
Após uma discussão acalorada, o rapaz reuniu suas coisas na mala, nem se despediu daquela que de uma maneira quase mágica surgira em sua vida e conquistara o seu coração, apenas partiu, dando às costas ao que um dia provocou tantas alegrias, garantiu tantos sorrisos, ofereceu uma paz que ele não encontrava em lugar algum. Pensou que seria fácil, mas quanto mais os dias se passavam mais a saudade aumentava em seu peito e oprimia o seu ser. Lembrar-se de Denise dificultava a respiração, balançava suas pernas e o fazia sentir um desejo ardente por retroceder nos passos rígidos, reconciliar-se e retomar sua história de onde ela fora interrompida. Mas o orgulho não deixava. Talvez se ela o procurasse com um pedido de desculpas as coisas mudassem, mas ele não tomaria a iniciativa, ele não concordaria com o fato de que também contribuíra para aquela ruptura tão dramática e indesejada.
Preferia sofrer a dor do amor.
Depois de anos morando juntos, agora acordava de manhã no apartamento desconhecido sem contemplar aquele par de olhos castanhos que mais pareciam ornamentados por gotas de mel. Nem mesmo recebia aquele sorriso tão doce e singelo, característica ímpar da moça de cabelos cacheados e coração tão nobre. Não tinha mais a sua companhia para o café da manhã. Não era mais seu o privilégio de, ao final do dia, repousar a cabeça em seu colo e sentir os seus dedos passeando por entre os seus fios em uma demonstração de afeto, um afeto que o acalmava, que jogava para longe qualquer incômodo que tivesse se apossado de seu ser ao longo do dia. Tudo aquilo fazia falta. Mas o orgulho era maior do que qualquer saudade.
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Denise não acreditava nos contos de fadas apesar de ser uma fã assídua. Gostava das reflexões que os contos traziam, das lições que conseguia adquirir através de uma leitura silenciosa e detalhada, mas sabia que aqueles desfechos tão fantásticos eram apenas aquilo mesmo, uma adorável e inspiradora fantasia, a vida real exige esforços para os quais nem sempre nos dispomos.
Esforços como os que ela deveria se empenhar por fazer se quisesse de volta aquele homem tão carismático e elegante que em todas as manhãs, quando o sol invadia o quarto, tocava seu rosto de uma maneira tranquila e suave dizendo aquele “bom dia” sonolento que soava como uma canção de amor aos seus ouvidos, a canção que lhe garantia forças e coragem para retomar a vida, reiniciar seus passos e prosseguir em mais um dia. Sentia falta dos dedos que se entrelaçavam sobre a mesa durante o café da manhã e dos desejos que um lançava ao outro para que tivessem um dia tranquilo, com oportunidades de realizações. Era angustiante ficar naquela casa sozinha, onde cada canto despertava em sua mente as mais nostálgicas e românticas lembranças, como da vez que chegara do trabalho completamente exausta, estressada com o chefe, mas teve que se esquecer de todos os problemas porque um rapaz galanteador, debaixo de um terno tão sofisticado, a aguardava ao lado de uma mesa tão bem enfeitada segurando nas mãos um buquê detalhadamente organizado. Lembranças como aquela despertavam as lágrimas saudosas que percorriam o seu rosto.
Será que tudo aquilo teria acabado?
Ela sentia medo de, em qualquer dia desses, alguém bater no portão trazendo consigo a papelada que ela não gostaria de verificar, muito menos de assinar. Mas o medo de perder alguém que amava, o medo de ter que se afastar de uma vida que a fazia feliz, era menor do que o orgulho que feria sua alma. Ela não queria concordar que a culpa por aquela briga também fora sua, não queria assumir que tinha responsabilidade naquela separação tão amarga, talvez se ele aparecesse com humildade, reconhecendo o quanto fora exagerado em seu comportamento, seu coração amolecesse e a vida voltasse ao normal.
Ela se esquecia de que para o amor funcionar todos possuem sua parcela de responsabilidade. O amor não é um compromisso que firmamos sozinhos. O amor é um voto que fazemos em união com alguém.
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Precisando distrair a mente, na intenção de fugir daqueles pensamentos que se amontoavam e pareciam querer dominá-lo, Jeferson vestiu sua roupa de corrida e apressou os passos pelas ruas agitadas naquele entardecer de verão. Os fones nos ouvidos abafavam o som do ambiente. A velocidade não permitia que a paisagem fosse observada e, assim, ele não se recordava dos muitos momentos que vivera com Denise naquelas mesmas ruas. Sua estratégia parecia funcionar até que o corpo chegou ao seu limite, as pernas foram acometidas por câimbras e o fôlego precisou ser retomado.
Curvado, colocando as mãos sobre as coxas, mantendo os olhos fechados enquanto tentava regular a própria respiração, o rapaz sentiu os pés se molharem. Endireitou-se no mesmo instante. Abriu os olhos como alguém que toma cuidado para a claridade não incomodar. Não era possível o que estava acontecendo. Não era possível que havia sido traído pelos próprios sentidos. Ele se jogou sobre a areia pouco se importando se iria se sujar ou não. Apenas se sentou encolhendo as pernas para si, envolvendo-as com os braços e escondendo o rosto atrás dos joelhos.
Aquela era a praia onde ele se encheu de coragem para confessar à Denise que a amava.
Aquela era a praia onde ela o encarou com aquele sorriso irresistível e confessou que o sentimento era recíproco.
Aquela era a praia que testemunhara o primeiro beijo.
O beijo que abriu as portas para que muitos outros acontecessem.
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Ele não iria voltar. Talvez nunca mais fosse voltar. Apesar de estar revoltada com tudo o que acontecera, apesar de se manter no orgulho que a consumia e privar as pernas de saírem correndo à procura daquele que amava, Denise possuía uma singela esperança de que Jeferson despontaria na esquina para a qual ela olhava atentamente, tendo um sorriso no rosto, mantendo os braços abertos, prontos para recebê-la com todo o amor que apenas ele possuía. Aquele era o gesto que ela esperava. Bastava aquela demonstração para que ela se esquecesse de tudo e corresse ao seu encontro. Mas sua espera parecia inútil, ele não faria aquilo, era teimoso tanto quanto ela, não aceitaria ser culpado por algo pelo qual também se sentia vítima.
Desanimada, pronta para entrar em casa e encarar mais uma noite de solidão, a jovem mulher flagrou uma senhora se desequilibrar com algumas sacolas e cair no chão. Foi ao seu encontro. Ofereceu ajuda para a mulher que parecia desnorteada, como se sentisse que o mundo à sua volta girasse. A senhora não recusou a ajuda confessando que agira por teimosia, que devia ter acatado a recomendação do sobrinho para que esperasse ele chegar, assumindo que por certo ouviria alguns sermões. Denise trouxe a mulher para casa, sugeriu que a senhora ligasse para que o sobrinho fosse buscá-la ao que a pobre mulher de pronto concordou.
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Absorto em meio a tantos devaneios que tentavam convencê-lo e deixar de lado o seu orgulho e voltar para os braços que tão bem o recebiam, Jeferson sentiu outra vez alguma coisa tocar em seu pé. Voltou à realidade. Teve a atenção atraída pelo barquinho de madeira que trazia consigo uma foto antiga junto de um papel dobrado. A foto estava em preto e branco, mas o amor que o casal nela exibia parecia lhe trazer um colorido que apenas os nobres sentimentos humanos são capazes de proporcionar à vida. Ela sorria despreocupada enquanto era tocada sutilmente no rosto por outra pessoa que a encarava de uma maneira tão apaixonada. Pareciam felizes. Como se nada mais importasse nessa vida.
"Tudo que começa um dia termina. O nosso amor começou e para o resto do mundo ele pode ter terminado, não acontecerá mais nesse plano material, mas posso garantir que enquanto eu viver ele se manterá vivo. Nosso amor foi forte demais, ambicioso demais, corajoso demais para que a morte o vencesse. Ele é eterno. Ele se mostrou eterno. Apenas o que é eterno consegue vencer tantos obstáculos, tantas objeções, tantas recusas. Apenas o que é eterno passa pelo fogo e sai mais inteiro do que entrou.
Nosso amor foi testado pelo fogo.
E foi aprovado".
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— A senhora se sente melhor? — pegando o copo das mãos enrugadas, Denise mostrou preocupação.
— Pode ficar tranquila, foi apenas um mal-estar. Já não estou mais tão jovem quanto você — a mulher respondeu sorridente —. Os anos se passam, minha querida, e levam com eles tudo o que temos de precioso.
— As coisas deveriam durar para sempre.
— Se durassem para sempre não seriam aproveitadas como deveriam. Quem se importa com algo que estará sempre à disposição? A gente só se importa com a vida porque ela acaba, termina, por isso queremos aproveitar tudo aquilo que podemos, sabemos que um dia tudo ficará para trás.
— Em um passado que será doloroso visitar...
— Você está bem? — a senhora se interessou.
— Claro... Claro... — Denise tentou colocar um sorriso, mas os olhos já estavam marejados, o coração já se espremia e aquele olhar de “confie em mim” que lhe era dirigido apenas aumentou a emoção —. Para falar a verdade, não está nada bem — relutava contra as lágrimas, mas elas se agrupavam em suas pálpebras desafiadoramente, aos poucos saltitavam colocando para fora a tristeza que as motivava.
— Está sofrendo do coração?
Denise resmungou que sim. Já não conseguia falar. O amor doía.
— Não fique assim, minha querida — a desconhecida senhora, até pouco tempo precisando de apoio, era quem o garantia agora trazendo a inexperiente moça para um abraço de avó —. Eu também estou sofrendo do coração. Acho que foi por isso que perdi o equilíbrio. A gente acha que vai superar logo, mas o amor é grandioso demais para que possa ser simplesmente superado.
— O que aconteceu? — Denise perguntou com a voz abalada.
— Minha esposa morreu. Há um mês. Depois de cinquenta anos juntas tivemos que nos separar.
— Eu sinto muito... — a jovem mulher fortaleceu o abraço.
— Não precisa sentir — a boa senhora acariciava os cachos da jovem em seus braços —. Nós nos amamos o quanto conseguimos, o quanto nos foi permitido, poderia sentir muito se tivéssemos perdido tempo e não tivéssemos nos amado incondicionalmente por motivos pequenos...
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"As pessoas não concordaram muito com o nosso relacionamento. Poucos foram aqueles que se colocaram ao nosso lado ao longo desses anos para oferecer uma ajuda, uma palavra de ânimo ou simplesmente nos parabenizar por termos encontrado nossa outra metade como aqueles que se acham normais fazem. Para o amor não há normalidades. Ele apenas acontece de maneiras diferentes, com pessoas diferentes, trilhando caminhos diferentes. Nosso amor não foi nem melhor nem pior do que o dos outros. O amor nunca é melhor ou pior. O jeito de amar que talvez diga alguma coisa. E nós nos amamos com muita sabedoria. Tenho certeza disso. Tínhamos um mundo todo a vencer, a combater, jamais faria sentido que nos opuséssemos uma à outra. Não poderíamos agir de maneira equivocada. A força que você precisava eu era capaz de lhe oferecer. E a força de que eu necessitava sempre pude encontrar no seu ser. Esse foi o nosso jeito de amar. Um jeito certo. Saudável. Tudo o que fizemos foi nos amar".
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— Eu briguei com o meu namorado. Nós não nos casamos, não ainda, mas moramos juntos há algum tempo e agora eu sei que estava sendo a melhor coisa que acontecera na minha vida. A cada momento me vejo pensando nas conversas que essas paredes ouviram, nas gargalhadas que esses móveis testemunharam, nos momentos de amor que para sempre ficarão marcados em minhas lembranças.
— Você não acha que essas coisas possam voltar a acontecer?
— É impossível. Ele é um orgulhoso insuperável. Só precisava pedir desculpas, mas nunca faria isso.
— Você não precisa pedir desculpas?
— Ele começou a discussão por ser um exagerado.
— E você não foi capaz de entendê-lo.
— Agora quer dizer que a culpa é minha? — a jovem mulher se afastou repentinamente encarando a senhora como se a condenasse por tamanha petulância.
— Vocês jovens são sempre tão confusos... — a mulher sorriu divertida —. Prefere sentir essa saudade que a consome ao invés de pedir desculpas mesmo que se considere inocente?
— Isso é justiça.
— Isso é tolice.
Denise se indignou.
— Você ouviu o que eu disse? — a senhora interrompeu os segundos de silêncio —. Eu tinha uma esposa. Era casada com outra mulher. Faz ideia do tanto de coisas que tivemos que superar para que pudéssemos apenas ter a liberdade de juntar nossas escovas de dentes, compartilhar a mesma casa e dividir a mesma vida? Não teríamos tempo para nos amar como queríamos se fôssemos nos importar com orgulho. Se fôssemos brigar por coisas pequenas. Já tínhamos um mundo inteiro se colocando contra nós. Não precisávamos nos sabotar.
— Eu sinto muito...
— E eu sinto muito mais, só que por você. Eu não tive pais que me apoiassem, amigos que me encorajassem, colegas que me parabenizassem... Você tem um mundo que aplaude a sua forma de amor. Você está livre para sair por aí dando as mãos, exibindo que ama, demonstrando que é amada, mostrando que é feliz sem medo de apanhar, de ser encarada por um monte de cara feia, de espantar as pessoas que se afastam de você como se tivesse alguma doença contagiosa. E vai mesmo desperdiçar tudo isso porque não consegue ter uma conversa sensata?
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"E eu fico triste quando vejo muitas pessoas, com uma liberdade que nós não tivemos, desperdiçando essa oportunidade que lhes é dada por motivos tão infantis, tão pequenos, tão bobos, tão irracionais... Nós desejávamos sair por aí gritando que nos amávamos, anunciando para todo mundo que havíamos sido presenteadas pelo melhor que a vida pode proporcionar, mas nunca pudemos fazê-lo. Seríamos atacadas de tantas maneiras. Mas esses que podem gritar que se amam nunca fazem isso, no entanto não pensam duas vezes antes de gritarem o ódio que tão de repente passam a sentir um pelo outro. É confuso demais. Ao menos para nós, que não fomos tão livres quanto gostaríamos.
Mas não quero me lamentar por aquilo que fomos privadas de fazer. Quero apenas agradecer por aquilo que demos um jeito de viver. E tudo foi muito bom. Até o nosso último instante. Até a nossa última conversa. Tudo está guardado dentro de mim. Sei que essas coisas me garantirão forças para continuar um pouco mais. E eu espero que as pessoas possam entender isso. Possam reconhecer a importância de se ter boas recordações para que na hora da saudade elas sirvam de bálsamo.
Estou cumprindo com o seu desejo. Estou deixando que você navegue pelo mar na esperança de que o nosso amor encontre alguém e o encoraje a também vivê-lo com sabedoria e compromisso. Esse alguém talvez possa ter a liberdade que nós não tivemos, espero que ele saiba aproveitá-la. E espero que ele permita que você continue navegando por aí, falando a outros corações, inspirando a outros amantes, oferecendo ao mundo aquilo que de mais precioso poderíamos oferecer: amor".
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A senhora foi embora deixando um coração reflexivo.
O barquinho seguiu sua viagem deixando um coração encorajado.
As chaves giraram.
Os carros se puseram à andar.
Passaram um pelo outro naquela noite tão especial.
Os olhares se viram, com espanto.
Estacionaram ansiosos.
Aproximavam-se com desejo.
— Temos algo que nem todos possuem — a alguns metros de distância, Denise proferiu.
— Eu sei... — com o peito acelerado, Jeferson concordou.
— Nós somos livres para nos amar... — a moça não conteve aquele choro sentimental.
— Sei disso também... — o rapaz se sentiu contagiado por aquela emoção.
— Não podemos ser a nossa própria prisão.
— E não seremos.
(Escrito por @Amilton.Jnior)