Nossa Condição

O casamento aconteceria em poucos dias, mas a distância que se colocava entre aqueles que escolheram construir uma vida juntos aumentava a cada segundo. Como poderiam estar prestes a se casarem permitindo que um abismo tão colossal se colocasse entre eles? Será que não percebiam que aquilo era exatamente o contrário do que é necessário para que uma vida a dois funcione e aconteça? Será que não se davam conta do risco que corriam proibindo os corações sufocados de desabafarem? Eles se amavam. Amaram-se desde que se conheceram quando eram dois concorrentes disputando pela mesma vaga de emprego. Ela conseguiu a vaga por mérito próprio e ele deixou de lado a rivalidade para parabenizá-la pela conquista. Trocaram telefones. Um adentrou a vida do outro prometendo que jamais partiria, confessando que não conseguiriam mais sobreviver sem a companhia um do outro.

Estavam se esquecendo daquelas promessas e declarações?

— Estamos bem? — tendo acertado como gostariam que fosse o bolo de casamento, Téo resolveu dissipar o silêncio que retornou entre eles tão logo deixaram a confeitaria responsável por surpreendê-los.

— Acredito que sim... — de seu modo vago, comportamento corriqueiro nos últimos dias, Samanta forçou um sorriso, mas seu empenho foi em vão, o desânimo estava estampado em seus olhos, era como se não estivesse mais tão convencida de que aquilo era o certo a se fazer.

Téo, que nos últimos três anos aprendera a reconhecer cada detalhe da amada noiva, não poderia acreditar naquela resposta, aceitá-la simplesmente, era óbvio que as íris ofuscadas clamavam por socorro, por auxílio, por atenção ao desabafo que a alma ansiava fazer.

— Quero levá-la para um lugar — abrindo a porta do carro, o rapaz anunciou.

— Eu não sei se seria uma boa ideia... Temos tantas coisas ainda...

— Nada disso importa se nós não estivermos bem — demonstrou a preocupação que sentia pela realidade que se instalava em seu relacionamento, uma realidade nenhum pouco desejada, cobiçada, planejada.

Samanta não disse mais nada. Seus pensamentos eram densos demais para que ela conseguisse elaborar um protesto que fizesse o noivo desistir de suas intenções. Apenas aceitou. Aliás, era o que mais fazia ultimamente. Apenas aceitava que a vida a levasse para onde fosse, não tentava mais controlar as rédeas do próprio destino, nada mais parecia fazer sentido.

Percorreram o caminho em silêncio.

Aquele silêncio que assustava, que apavorava, cuja ideia parecia anunciar impiedosamente que o amor acabara antes mesmo de começar, antes mesmo de ter uma chance de florescer.

O carro parou.

Diante dos seus olhos estava o imenso mar de ondas enérgicas, ventos velozes e sol impotente.

— Téo... — ao ter a porta aberta e receber uma mão estendida em sua direção, a mulher angustiada tentou relutar.

— Por favor... Apenas agora. Prometo não insistir mais.

Ela o amava. Era aquilo nele que tanto a fascinava. Aquele cuidado incondicional, aquele carinho tão suave, aquela tranquilidade que irradiava de seus olhos e tocava em seu peito. Não queria perdê-lo. Mas também não achava justo que ele fosse obrigado a abdicar de seus sonhos por sua causa. Seria egoísmo. Seria injusto. Talvez naquela tarde ela finalmente pudesse libertá-lo de si, deixá-lo livre como merecia, livre para realizar sonhos que com ela jamais se tornariam realidade.

Tocou a mão estendida. Como de costume, algo formigou em seu ser no simples toque entre as peles que tão bem se conheciam, que se encaixavam, cuja química era mais do que compatível, era complementar, formava a reação perfeita.

Mas precisava se importar menos com aqueles pequenos detalhes que tornava tudo aquilo tão mágico e prazeroso. Precisava ser forte. Por amar aquele homem deveria ser forte para afastar-se dele e lhe garantir um futuro de realizações.

Téo, por sua vez, sem ter conhecimento sobre quais eram os pensamentos da mulher amada, quais eram os infortúnios que diminuíram o brilho de sua face e pareciam oprimir o seu espírito tirando-lhe toda a empolgação quanto à vida, estava disposto a ouvir suas palavras, a receber sobre si as suas dores, a ajudá-la no que fosse que estivesse acontecendo. Nada importava. Jamais colocara nem colocaria qualquer condição para que o seu amor fosse inteiramente dela. Apenas uma coisa era necessária: que ela o aceitasse. Que ela confiasse em suas nobres intenções. Que ela permitisse que ele a fizesse a mais feliz das mulheres.

Querendo romper a barreira invisível que entre eles surgia, querendo dissipar o ensurdecedor silêncio que muito o preocupava, o jovem rapaz, ansioso pelo importante passo que em poucos dias daria, envolveu o corpo da amada com um dos braços, trouxe-a para mais perto de si e sincronizou os passos que deixavam marcas na areia da praia.

Precisava daquele momento de paz e sossego. Daquelas horas nas quais estariam distantes de todo o resto do mundo, afastados da correria dos últimos dias, poupados das preocupações que a vida futura levantava em suas mentes. Precisava daqueles instantes para demonstrar que estaria sempre ali, presente, sendo a companhia que Samanta merecia.

— E, então. Pode me dizer o que a incomoda.

— Téo... — a voz embargou. Ela queria revelar seu segredo, queria se libertar daquilo que a corroía, mas não achava justo que aquele de quem recebia tanto afeto sofresse por problemas que eram somente seus.

— Nós vamos nos casar. Acho que assim como você, eu estou tremendamente ansioso por esse dia. Mal consigo dormir pensando em como será. Penso não apenas na festa, mas no que vai acontecer depois disso. Quando finalmente tivermos uma vida para chamar de nossa. Quando estivermos frente a frente com os desafios que todos os casais enfrentam. E isso me preocupa. Mas é normal. Todas as mudanças trazem aquela ansiedade incômoda. Talvez você também esteja passando por isso e eu quero que conte comigo para o que for preciso. Suas dores serão as minhas dores. Precisa saber disso.

Ela não o merecia.

O que ela poderia lhe dar em troca de todo aquele amor? Como ela poderia ser grata por toda aquela dedicação? Privá-lo de seus intrínsecos desejos, dos muitos e belos planos que fazia para o futuro jamais seria a melhor forma de demonstrar sua gratidão, de retribuir todos aqueles nobres sentimentos que sempre superariam as suas limitações. Ele merecia alguém tão perfeito quanto ele.

— Não vai mais acontecer um casamento — reunindo forças que não sabia que seriam tão necessárias para formular uma simples frase, Samanta declarou aquilo que ela sabia que feriria o seu ouvinte, mas era melhor feri-lo somente uma vez do que machucá-lo pelo resto de seus dias.

Os passos foram interrompidos.

As águas tocavam os seus pés e voltavam para o mar.

— O que disse? — Téo se virou para a mulher cabisbaixa, a mulher que não tinha coragem para encará-lo nos olhos, que não queria ver a dor que poderia estar lhe causando.

— Não torne mais doloroso... — seu pedido soou como uma súplica desesperada.

— Eu não entendo... — ele tocou em seu rosto, fez os olhos se conectarem, viu amargura nos da amada —. Não é o que você quer. Então por que está dizendo isso?

Ela se esquecera de que ele conseguia ler seus pensamentos apenas encarando-a, apenas prestando atenção em seu olhar. Ela não queria aquilo. Nunca desejaria ter que se afastar daquele que amava de maneira tão intensa, tão profunda, tão descontrolada. Mas precisava que fosse assim.

— É claro que não quero. Eu amo você — as lágrimas surgiram —. Mas é exatamente por isso que não posso continuar com tudo o que planejamos. Nossos planos não são mais para mim. Eu não posso mais conviver com eles. Tornaram-se desafios impossíveis de superar. Não para você. Você poderá realizá-los, mas não comigo.

— Eu preciso que seja mais clara. Não importa o que esteja acontecendo, nós vamos dar um jeito. Eu prometo...

— Não prometa o que nem sabe que nunca poderá cumprir.

— Se você não me disser...

— Eu sou estéril.

— O quê? — as mãos se soltaram.

— Depois de algumas vezes que estivemos juntos sem nos prevenirmos eu achei estranho que nada tivesse acontecido. Não poderia ser apenas sorte. Então procurei um médico. Fiz alguns exames. E é isso. A família que você sempre disse que deseja, os filhos que sempre deixou claro que quer ter, nada disso poderá acontecer se eu estiver na sua vida. Não posso realizar os seus sonhos, Téo. Não posso ser tão boa para você quanto é para mim. Eu sinto muito. Não há nada que você ou eu possamos fazer. Aliás, somente eu posso fazer algo. Deixá-lo livre.

Depois do silêncio, o gesto.

Téo abriu os braços e recebeu a desolada Samanta.

Abraçou-a com força.

Como se naquele abraço pudesse absorver todo o seu sofrimento, toda a sua frustração, tudo aquilo que estivesse diminuindo a energia de sua alma e sugando a força de seu espírito.

— Por que não me disse antes?

— Eu sinto muito... — para ela, aquele poderia ser o derradeiro contato, a última aproximação, a última vez na qual estariam se sentindo de maneira tão íntima. Queria aproveitar cada minúscula sensação. Deixar registrado em sua memória tudo o que sentia quando estava perto do homem amado. Talvez aquela lembrança pudesse ser como combustível para que ela, solitariamente, seguisse em frente —. Não se preocupe com os preparativos. Eu dou um jeito... — em sua concepção, era o mínimo que poderia fazer.

— Você vai precisar de um motivo bem maior e mais plausível se quiser mesmo ficar livre de mim — Téo surpreendeu.

— Não faça isso... Não posso conviver com a culpa de tê-lo obrigado a renunciar sua própria vida.

— Estaria renunciando a minha vida se estivesse renunciando aquela que lhe dá sentido. Será que não consegue perceber que você é a minha vida? Eu sinto muito que tenha passado por isso sozinha e sinto muito que tenha demorado tanto para perceber, mas agora isso que você acha que é um problema não é apenas seu, é nosso. Sim, eu quero ter uma família, eu quero ter os nossos filhos, não é a nossa condição que nos impedirá.

— Minha condição...

— Nossa condição. Sei que ainda não estamos casados, mas há muito tempo considero que nossas vidas se uniram e se tornaram uma só. Então a condição é nossa e nós vamos contorná-la. Isto é, se você também quiser. E se eu precisar sonhar outros sonhos não haverá problema algum, desde que neles você possa existir.

Um peso saiu de suas costas e o brilho tornou aos seus olhos.

Ela beijou o homem amado.

O homem que a cada dia amava mais.

(Escrito por @Amilton.Jnior)