A mudança com a mudança
Na vila instaurou-se o caos com a chegada de Tomaz e sua turma.
Tudo era calmo naquela vila no meio do bairro de Pinheiros, conhecido pela sua efervescência. A sensação era de que lá a poluição sonora, ambiental e de palavras não entrava. O seu início se dava pela Rua Amaro Cavalheiro e o seu fim também, formando um “U”, muito próximo da Rua dos Pinheiros. Mesmo estando a poucos metros do Shopping Eldorado, até mesmo as roupas dos moradores pareciam diferentes, um tanto interioranas. Os moletons simples, de cores claras, voavam nos varais nos pequenos quintais das casas geminadas. Tudo era paz.
Adélia cantava há anos no Coro do Teatro Municipal e os seus acordes já faziam parte da rotina da vila. Sempre que havia concerto todos eram convidados e, não raras vezes, a vizinhança em peso comparecia para prestigiá-la. Não é exagero falar que Adélia foi responsável por refinar o gosto musical daquela gente que, de gosto, não tinha muita coisa.
Marina, uma conhecida e alegre vizinha, até comprou um vestido preto com corte de alfaiataria para comparecer aos concertos. Para combinar com ele usava os seus scarpins pretos, e trocava de lenço ou colar parecendo, em cada ocasião, estar com roupa nova no mais adequado estilo. Sempre arrasava quando chegava com seus ouvidos dispostos a ouvir uma boa música com sua idumentária impecável. Era uma vila diferente, ímpar, por abrigar pessoas de classe média baixa, na sua maioria aposentados, com boa formação e todos proprietários de suas casas.
Certo dia, em pleno verão, o câncer levou a Dona Zulmira, que morava sozinha e era amparada por uma boa acompanhante há anos, já que os dois filhos moravam no exterior. Com a impossibilidade de os mesmos chegarem a tempo e não tendo mais qualquer familiar próximo, tudo foi providenciado pelos vizinhos, inclusive a cremação, que contou com o canto de Adélia na despedida. Tristeza geral. Como sair de casa e não contar com o sorriso da Dona Zulmira no espaldar da pequena janela, emoldurada por um filete verde limão na parte superior?
Os meses se seguiram e até a espada de São Jorge, plantada em um vaso na entrada da sua casa, morreu. Ninguém mais tinha notícia de coisa alguma até que, em um final de tarde, surgiu um pequeno caminhão freteiro que estacionou no meio da vila. A seguir chegou um carro com 3 rapazes e o restante do espaço do carro com inúmeros instrumentos. Tinha de tudo, de bumbo a pandeiro.
A mudança levou pouco tempo, pois a mobília era mínima.
Adélia, que naquele dia se preparava para um concerto à noite, acompanhou toda a movimentação com o coração aos pulos. Pressentia que aquela mudança não combinaria com a vila. Ao ouvir um rebolo cair, tapou os ouvidos com as duas mãos e resolveu antecipar a sua saída para o concerto.
No dia seguinte circulou a notícia de que a casa da Dona Zulmira fora alugada para um grupo de pagode que não fazia absolutamente nada além disso, tendo como responsável um tal de Tomaz da Silva.
Em muito pouco tempo os sons de violino, cítaras e afins começaram a se misturar com os de uma percussão estranha … e a vila nunca mais foi a mesma.
Adélia, em poucos meses tomou, segundo ela, a decisão mais sensata da sua vida: mudou-se para o apartamento da sua irmã no Campo Limpo.
Escrito na Oficina "Provocações" - módulo 03 (Editora Pragmatha)