A arte na vida

Jardel era menino colorido. Bonito, louro, sempre despenteado, trajava um macacão costurado por pedaços de tecido quadrados de todas as cores. Nos pés meias listradas de preto e branco arrematavam os sapatos rasgados, visivelmente maior que os pés. Mas ele parecia feliz, sempre às 8h na esquina da Avenida Borges de Medeiros com a Rua Marechal Floriano Peixoto. Era alí que eu o encontrava todas as manhãs na sinaleira, quando eu me dirigia para o trabalho. Na maioria das vezes eu retribuia o seu sorriso e fazia um gesto de que estava sem dinheiro. Mesmo assim ele agradecia.

Dominava a arte com malabares e me deixava atônita com a sua habilidade. Não raras vezes eu “acordava” com buzinas ensurdecedoras atrás do meu carro, por não ter partido no sinal verde. A culpa era de Jardel, que me hipnotizava com a sua arte.

Os dias e meses se seguiram naquele ano atípico, parado, entristecido pela pandemia da Covid-19, mas o artista não arredava pé do palco. Prá mim era um alento, no frescor da manhã, encontrá-lo com tamanha garra.

Lembro-me de que, em um dia muito frio no mês de julho eu fiquei tão encantada com ele que ousei baixar o vidro do carro e gritar: “bravooooo!” Ele colocou a mão no peito e, curvando o corpo com elegância fez um gesto de agradecimento. Tudo aquilo me deixava feliz, disposta para enfrentar o dia, que nem sempre era fácil. Mas confesso que nunca tive curiosidade em saber quem era ele, o que fazia alí, o que o tinha levado a fazer tamanha arte por moedas.

Passados poucos meses, no mesmo horário, na sinaleira, lá estava ele … só que desta vez sem fazer malabares e sim com uns bilhetinhos amassados pendurados nas mãos. Parei o carro, baixei o vidro e fiz um gesto para que ele se aproximasse. No bilhete estava escrito: “estou com fome”. Não conseguiria descrever o meu sentimento naquele momento. Sem olhar o sinal virei o carro para a direita e o estacionei em frente à uma garagem, sem dar-me conta da multa que poderia render.

A menos de 50 metros dalí tinha uma padaria. Peguei Jardel pela mão e, com um ato desesperado, o fiz sentar em uma das mesas existentes quase gritando para a atendente proceder o nosso pedido. Jardel comeu 2 sanduíches duplos com 1 coca-cola média. Estava realmente faminto.

Vendo a sua satisfação liguei para o escritório e solicitei que cancelassem a minha reunião das 9h. Da padaria seguí com ele para a praça da matriz, muito próxima dalí. Lá, pela primeira vez, sentada ao seu lado em um banco de cimento, tive curiosidade sobre ele. Com a mesma simplicidade que sempre se apresentou na sinaleira falou-me, em rápidas frases, o que o levou a trabalhar dessa forma. Era filho de mãe solteira. Com 18 anos engravidou uma menina no Paraná e, sem condições de mantê- la, enveredou-se para um circo instalado em Ponta Grossa. Lá conheceu Maneco, o grande mestre de malabares. Com ele aprendeu a equilibrar o corpo, os malabares e a vida.

O circo saiu de Ponta Grossa e veio para Porto Alegre. Lá ele acabou se desintendendo com Maneco e tomou o 1o. ônibus para Santo Antônio da Patrulha, onde tinha uma tia por parte de mãe. Aquí chegando tomou conhecimento de que a tia havia falecido com a pandemia. Pediu moradia para o primo e por lá andava há bastante tempo. O dinheiro que ganhava na sinaleira era para drogas, já que a filha ele abandonara.

Só não abandonara a arte e, no final da conversa sentenciou: “tia, eu já fiz tanta arte que só o que eu sei fazer mesmo é arte!”

Já em direção ao carro, sentenciei para mim mesma que nada restaria senão a minha resignação.

(escrito na Oficina "Provocações" - módulo 03 da Pragmatha Editora)

Conto publicado no PROSA NA VARANDA 7 - 2023

Rosalva
Enviado por Rosalva em 14/05/2021
Reeditado em 07/03/2023
Código do texto: T7255547
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