ANEDONIA

Ela de novo deixa nova a pia suja pela limpeza de seu casamento. Marido desempregado anda meio nublado por causa da falta do que fazer e o excesso de planos desfeitos, já que não pode sair de casa senão para o essencial. A bela mulher decidira não usar mais maquiagem nem roupas curtas ou silhueta atraente como gosta. Nunca fora de outro homem, mas se sente como usada por todos. Ouve que é desejada demais para ser fiel.

Após o almoço. Outra vez escuta a reprovação de sua comida e o arrependimento de ter se casado com uma mulher que parecia correta. Ela, diariamente, ignora. Sabe que seu homem tem um coração bom. A situação difícil tem agitado ao mundo, não seria diferente com ele. Passar o dia inteiro próximo de quem se ama é um desafio para firmar os casamentos e as relações familiares. A jovem dona do lar prefere convencer-se de que é melhor a doação integral a quem lhe jurou amor e fidelidade na alegria e tristeza, na riqueza ou pobreza. O que é riqueza ou pobreza? Renunciara às amizades, sobretudo às masculinas, ao bom trato nos cabelos, à pouca roupa que revelava suas curvas, na mesma intensidade da atenção nas ruas, durante as belas tardes de sol em que costumava ir ao salão de beleza para se ajeitar, pois sempre quis dar seu melhor ao casamento, tornando-se ainda mais bela no intuito de fortalecer o desejo conjugal. Além disso, suas amizades são quase todas do universo da beleza onde trabalhava.

O Seguro Desemprego chegando ao fim e ela verdadeira na falsa decisão que propôs a si mesma no sentido de não voltar ao ofício de manicure. A bela casada inventa a certeza de querer se apagar em nome da ardente chama matrimonial. Chama que a chama a cada dia para um cômodo de sua alma que desconhece. Parece desejosa em deixar tudo como está pela felicidade inventada para o sempre.

Aos poucos, durante os afazeres domésticos, o dia se esvai. Logo o sol dá lugar a mais uma noite estrelada sem estrelas. A lua parece uma demarcação arbitrária para a mesma ocupação. A jovem senhora repete que seu querido esposo lhe dará outro alento devido, uma nova noite de amor que nunca envelhece.

Ainda no limiar da recuperação do cansaço diário, ouve de seu esposo a convocação. Do quarto, no meio de um louvor, grita o que ela sabe que deve fazer para cumprir as Escrituras: “A mulher sábia edifica a sua casa, mas a tola a destrói com suas próprias mãos” e: “As mulheres devem ser submissas a seus maridos”. Ela parte ao banheiro a fim de se ajeitar. No caminho rumina sobre como seu marido é bom e carinhoso, um cristão repleto de cuidados e pormenores românticos, antes e após Jesus. Ela, indecisa por muitos anos, agora tem a certeza de que jamais se entregará ao Senhor, senão pela mais profunda e genuína convicção. Na verdade, desde o início da calamidade global, ela sabe o quanto seu marido tem se convertido em muitos. Ela ainda é capaz de vê-lo e senti-lo desejosa para doar seu corpo e espírito, como uma pagadora de promessas numa via crucis evitável, mas irrevogável.

Acordara cedo para arrumar a mesa. Ainda o cheiro fresco do café quente impregna a cozinha, ouve a pergunta do esposo sobre a noite de sexo. Ela nem sente o aroma nem a pergunta. Contudo, endossa às exclamações eróticas recebidas como num transe programável. Sem fome. Espera o marido terminar para limpar tudo, inclusive as nódoas que lhe surgiram no corpo e teima em esconder. Faz sempre sexo no escuro. “Ainda bem que ele não reclama”, sussurra lavando os pratos. Prefere não o incomodar com mais problemas que ele já sabe: nenhuma mulher deve ser o termômetro da força de seu homem. Uma tontura a acomete desde o dia anterior, mas finge estar bem. Esse sintoma a persegue nos dias seguintes, até que, no meio da limpeza da casa, desmaia. Desperta muito depois. Ainda atônita, aguarda se o marido vem com alguma reclamação ou rogo para que cuide da saúde, mas nada. Ouve que ele está no quarto do casal, trancado recitando a Bíblia em voz alta. Ajeita-se e segue a rotina, ainda controlando um enjoo que de ocasional se torna permanente. Aos poucos vê as rusgas em seus delicados braços se espalharem. Também nas pernas, pescoço, rosto. Embora contra a própria decisão, passa a usar uma leve maquiagem para lhe cobrir a roxidão nos olhos.

Numa bela manhã, ela não sente forças para se erguer da cama. Mas se encontra feliz. Seu esposo fora dormir na casa da vizinha para evangelizá-la, como tem feito há alguns dias. Dormir e acordar sozinha nesse período a enche de paz. Devagar, vira-se para a janela entreaberta, onde um passarinho canta sobre o parapeito, como se a chamasse para um lugar melhor. Suavemente ela sorri e chama por Jesus, dessa vez repleta de convicção. Antes de fechar os olhos, ouve claramente: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso”.

John Grafia
Enviado por John Grafia em 12/05/2021
Reeditado em 13/05/2021
Código do texto: T7254237
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