Reencontro

Tantos anos se passaram. Uma vida inteira fora compartilhada sem deixar de fora nem o menor dos detalhes. Tantas declarações, tantas promessas, tantas experiências, tudo aquilo estava registrado na memória, gravado no coração, aprisionado nas almas feitas para que caminhassem lado a lado. Mas agora o tempo marcava sua presença, fazia sentir os seus efeitos, os lábios já não conseguiam se mexer, aos olhos pouco era permitido enxergar, apenas os dedos se tocavam, ao menos as peles se sentiam, e aquilo era reconfortante ao idoso casal, adoecido pelos anos, a cada segundo mais e mais interligado.

"Tudo começou sem a menor pretensão. Apenas começou e não pôde mais parar. Ele era um jovem talentoso, aonde ia levava o seu violão e agraciava a quem quisesse ouvir um pouco de música. Era inegável a sua alegria a cada nota que tocava. Era inegável a sua paixão por aquilo que tão bem fazia, que tão bem faria, que por toda a sua vida o acompanharia e o tornaria num admirável romântico poético.

Mas naquela tarde ele não tocou apenas,

Foi tocado.

Enquanto cantava, dançando com os dedos por entre as cordas afinadas e intimamente conhecidas, seus olhos se encontraram com os de uma garota que provocou o friozinho em seu ser. Ela estava sorridente. E parecia observá-lo com curiosidade, com admiração. Se ele já estava cantando bem, a partir daquele momento cantou maravilhosamente bem, queria impressionar, queria que se sentissem tentados a se aproximarem um pouco mais.

Soou as últimas notas.

Sorriu para a plateia que o assistia.

Mas um sorriso especial foi lançado para a garota de olhos castanhos.

Ela era uma jovem poetisa. Em seu quarto, livros e mais livros enfeitavam as paredes, além dos muitos escritos que ela mesma produzia. Seus sonhos eram românticos, não apenas aqueles sonhos de quando estamos adormecidos, mas principalmente os sonhos que temos enquanto nos sentimos bastante acordados. Sonhava com um futuro de amor. Sonhava com um futuro no qual pudesse compartilhar a vida com alguém sensível, importante, que conquistasse parte do seu coração.

E naquela tarde especial teve um encontro com os próprios desejos ao vislumbrar um grupo de pessoas que circundavam o dono de uma voz agradável.

Aproximou-se curiosa.

Impressionou-se com o jovem elegante que se entregava de corpo e alma à sua arte.

Arrumou um jeito de se aproximar um pouco mais e ficar de frente para o cantor. Precisava ouvi-lo com maior nitidez, sentia que através da cantoria voltaria para casa cheia de inspirações para compor suas próprias histórias, seus próprios poemas, para transbordar sentimentos em seus textos românticos e esperançosos. Não pôde esconder o sorriso quando ele a encarou de seu modo tranquilo e lançou aquele sorriso tão leve e despreocupado. Sentiu algo diferente em seu próprio ser, como se o futuro aos poucos se aproximasse.

Não poupou aplausos quando a música se encerrou.

Sentiu vontade de parabenizar o cantor pessoalmente.

Mas sentiu-se insegura. Preferiu seguir o seu próprio rumo.

Mas ele não poderia arriscar perder a bela moça de vista. E se nunca mais se encontrassem? Ela parecia diferente de todas as que ele conhecia, e era, era diferente porque não estava ali para ser apenas mais uma amiga, estava ali para adentrar a sua vida de formas inimagináveis.

Correu ao seu encontro.

Parou diante dela.

— Perdoe-me — disse ofegante, desculpando-se pela apresentação que a assustou.

— Pensei que teria que colocar em prática o meu karatê — ela respondeu divertida, seu sorriso era aberto, espontâneo, era conquistador.

— Eu precisava falar com você — o jovem cantor declarou sem perceber, mas depois que as palavras soaram a mente entrou em colapso, o que realmente ele tinha a dizer? E como dizer?

— Pode falar — perante os segundos de silêncio confuso, ela tentou encorajá-lo.

— Bom... Apenas gostaria de saber se gostou de mim... Quero dizer... Da música... — ruborizou-se.

— Se eu disser que há tempos não escuto alguém tão talentoso já estarei respondendo? — ela elogiou.

— Assim eu me sinto lisonjeado — ele tirou o chapéu revelando os cabelos que caíam sobre a testa e dançavam no ritmo do vento, inclinou-se perante a moça, era um nato cavalheiro.

— Mas é a verdade — o coração da jovem balançou estranhamente, ele era mais atraente do que havia parecido.

— Talvez gostaria de ouvir mais — tirou um cartão do bolso, era ingresso para a sua apresentação —. Esse humilde sonhador adoraria encontrá-la por lá.

Ela aceitou o ingresso.

Analisou-o com atenção.

Talvez devesse aceitar.

— Quem sabe... — ela respondeu misteriosa, deixando-o ansioso pelo belo dia".

***

O despertador tocou.

Completamente desanimado, desejando amargamente para que já tivesse concluído os estudos ou ao menos tivesse mais alguns dias de férias, Téo se sentou sobre os lençóis, coçou os olhos com dificuldade para mantê-los abertos, esticou os braços na intenção de despertar o corpo e finalmente conseguiu se levantar.

Precisava se arrumar.

A rotina o chamava.

Entrou na escola sem um pingo de animação. Achava estranho que seus colegas quase explodissem de animação ao verem uns aos outros, ele apenas passeou pelos corredores da escola torcendo para que ninguém o percebesse. Entrou na sala e se sentou na cadeira de costume. Em poucos minutos o seu amigo chegou, eram iguais, apenas queriam tocar a própria vida sem chamar muita atenção.

***

Antes mesmo do despertador tocar Sofia já estava acordada encarando o teto do quarto. Aquele seria seu último ano escolar, mas em escola diferente, com pessoas diferentes, desconhecidas, em um cenário completamente novo.

Não demorou ao se arrumar.

Estava ansiosa por passar por aquele primeiro dia da melhor forma que conseguisse.

Sentindo-se como um peixe fora d’água, intimidada pelo desconhecido, a adolescente observou os muitos alunos que chegavam para o primeiro dia de aula. Alguns pareciam animados demais, como se a escola fosse o único lugar que desejassem ir, outros pareciam desanimados ao extremo, como se carregassem o mundo nas costas. Ela ainda não sabia como se sentia, o que esperar daquele ano, só sabia que o novo a assustava.

Adentrou a sala de aula.

Agradeceu aos céus pelos dois alunos presentes estarem de cabeças abaixadas.

Seria bom começar o ano sem o rótulo de aluna nova.

***

Ela foi ao show. E ele quase explodiu de felicidade.

E depois daquele encontro nunca mais se separaram.

Até aquele presente momento.

Estavam internados há semanas. Lutavam pela vida, apesar de saberem que já haviam vivido demais, apesar de saberem que muitos anos se passaram e que momentos como aquele eram inevitáveis. Ao menos ainda tinham a companhia um do outro, ainda conseguiam se lembrar das muitas músicas que Pedro fizera para Ana e dos fabulosos poemas que Ana escrevera para Pedro. Viveram uma vida de parcerias. De experiências inesquecíveis. De um amor genuíno e verdadeiro, invencível, imbatível até mesmo para o todo poderoso tempo.

Há poucos dias, já naquele hospital, quando ainda conseguiam fazer soar a voz, eles prometeram que se reencontrariam, que tornariam a viver juntos, a desfrutar dos deleites da vida em união. Tinham certeza de que aquela promessa seria cumprida. De uma forma que ninguém saberia explicar.

E o inevitável realmente aconteceu.

Eles partiram.

Sentindo o toque entre as peles.

Gratos por tudo o que viveram.

***

Era o último ano. Téo imaginava que os professores seriam mais sensatos e agradáveis e o poupariam de situações completamente desconfortáveis, mas estava enganado. O primeiro professor do dia propôs aquele tipo de proposta que é mais uma ordem. Teriam que se reunir em duplas para uma atividade artística. Mas as duplas seria ele quem determinaria.

Não apenas ele.

O destino também.

Não adiantou cruzar os dedos nem fazer promessas mirabolantes, Téo não pôde fazer dupla com o antigo amigo, foi designado para dar as boas-vindas à aluna nova. Mas ele já a conhecia. Só que não se lembrava.

— Tudo bem? — disposta a um bom começo, à criação de novos laços, Sofia foi simpática.

— Tirando essa chatice, sim — Téo não pensou ao responder, acabou se arrependendo —. Desculpa... — balançou a cabeça antes de dirigir a atenção à colega —. Só não entendo o propósito de atividades como essa.

— Não gosta de desenhar?

— Não gosto de expor o que não quero. É para isso que servem esses desenhos. Para que uns conheçam um pouco mais dos outros. Mas e se eu não quiser ser conhecido?

— Eu também não sei se gosto dessa ideia, acabei de chegar — encolheu os ombros tímida —. Mas às vezes faz bem conhecer um pouco sobre alguém. Podemos acabar ganhando uma parceria para o resto da vida, não acha?

— Você acredita que seja possível confiar em alguém?

— Você não?

— Não é tão fácil de responder...

— Eu acho que podemos confiar em alguém. E acho que sabemos em quem podemos confiar. Não é em todo mundo. Mas sempre tem alguém digno.

Ele a observou.

Abriu um sorriso que há tempos não abria.

— Tudo bem. Espero não me arrepender — posicionou o lápis sobre o papel, começou seu próprio trabalho.

Ela o analisou rapidamente.

E também sorriu.

Talvez ele só fosse alguém machucado, merecedor de um pouco de alívio.

Teriam que desenhar, explicar para o colega o motivo daquele desenho e um explicaria a história do outro. Essa era a proposta, uma forma de se conhecerem e treinarem a habilidade de ouvir o que outro realmente disse. Mas Téo não se sentia tão seguro ao se revelar dessa maneira, no entanto não tinha escolha, então faria aquilo acontecer da maneira mais agradável que conseguisse.

— Não ache estranho — cruzou os braços sobre o papel antes de mostrá-lo —. Eu gosto de imaginar histórias. E gosto de colocar em desenhos o que eu imagino, apesar de não exibi-los para ninguém. E essa é apenas uma coisa que eu imagino que possa estar acontecendo em algum lugar — afastou-se do desenho e o mostrou à Sofia —. Gosto de pensar que num momento como esse tem alguém cantando para alguém — seus traços retratavam um cantor contente sendo admirado por uma fã sorridente —. Pode ser apenas o começo de uma bela história não acha?

Os olhos da adolescente se arregalaram.

Ficou espantada.

— Eu fiquei pensando no que desenhar, mas não fazia ideia, até que me lembrei de um sonho estranhamente agradável. Não me diga que você tem o poder de ler mentes! — revelou o próprio desenho, uma jovem sonhadora apoiava o queixo sobre as mãos enquanto ouvia uma canção feita exclusivamente para si.

— Você sonhou com uma história que eu inventei? — ele achou confuso.

— O que está acontecendo? — ela questionou espantada.

Sorriram um para o outro sem entenderem nada.

Eles não sabiam. Talvez nunca fossem saber.

Mas as almas dentro deles sabiam.

Finalmente se reencontravam.

(Escrito por @Amilton.Jnior)