Entre mãe e filha
Estávamos no dia doze de janeiro de 2021, ano que estava fadado a ser igual ao anterior, marcado pela pandemia de Coronavírus que assolava o mundo já havia quase um ano, sendo muito cruel principalmente no Brasil, país que somava o maior número de mortos: cerca de duzentas mil pessoas até então. Era uma tarde quente de terça-feira em São Paulo, havia chovido alguns minutos por volta das quatorze horas, mas a água da chuva não foi capaz de refrescar o ambiente acalorado pelo sol escaldante que predominou por volta do meio-dia na região leste da capital paulista. O relógio já batia 15h30, e a alta temperatura, em torno de trinta e sete graus, não dava sinais que iria diminuir. E, se estava quente nas ruas, era ainda pior no interior do Hospital Municipal Dr. Benedicto Montenegro, ou apenas “Hospital Iva”, como é chamado pelos moradores do bairro de Jardim Iva, onde ele é localizado. No corredor de espera de consultas da unidade pública apenas um ventilador capenga tentava abrandar o calor sentido pelos pacientes e seus acompanhantes, todos sufocados pelas abafadas máscaras de pano usadas para proteger do Covid-19. Entre as pessoas presentes, sentada num acento no final do corredor, tremendo impacientemente uma das pernas e mexendo em seu celular, estava Isabel. Isa, como gostava de ser chamada, era uma mulher já com seus trinta e oito anos, porém a sua jovialidade parecia ser imune aos efeitos do tempo — davam-lhe vinte e quatro ou vinte e sete no máximo. Ela usava um lenço azul com detalhes brancos para prender seus cabelos castanhos, uma regata branca com listras azuis, uma saia jeans e um chinelo do tipo havaianas — o primeiro que achou antes de sair — e uma máscara toda preta, que quase esqueceu quando saiu rapidamente para socorrer sua mãe, a qual acordou se sentindo muito mal e precisou ser levada àquele hospital. As roupas de sua mãe também tinham sido escolhidas às pressas e apenas as coisas primordiais foram lembradas, como a máscara e a fralda, importante para evitar acidentes no banco do carro do motorista de aplicativo durante a ida até o local.
As duas aguardavam ansiosas pelo chamado de “Lúcia de Abreu”, nome da mãe de Isabel. Com certeza, ir a um hospital público, quase sempre lotado, em período pandêmico, não era algo muito aconselhável. E Isa sabia disso. Mas dona Lúcia, que passou os últimos dois dias indo várias vezes ao banheiro para urinar, estava com suspeita de infecção urinária, algo que, na idade dela (setenta anos) pode ser muito perigoso. Elas haviam descoberto o risco dessa infecção em mulheres idosas da pior maneira: em setembro do ano passado, dona Lúcia ficou internada durante cinco dias por ter entrado em estado de catatonia (uma forma de esquizofrenia que causa constantes mudanças de comportamento, podendo oscilar entre passividade, negativismo e momentos de excitação repentina), desencadeada justamente por agentes infecciosos presentes no canal urinário. Dona Lúcia havia ficado totalmente passiva e paralisada, precisando ser levada por uma ambulância até o pronto-socorro. E foi nessa época que Isa percebeu que os papéis de mãe e filha, que ambas tinham se acostumado a desempenhar desde sempre, iriam fatalmente se inverter, porque, segundo o doutor que a atendeu, a infecção se desenvolveu devido à falta de uma higiene íntima adequada, pela qual, a partir de então, era Isa que estava responsabilizada — assim como sua mãe fazia para ela quando bebê.
Essa inversão de papéis foi traumatizante para Isabel. Mas ela mantinha-se firme, no famoso e movimentado "Iva", buscando forças para aguentar o tédio e o estresse provenientes daquelas circunstâncias. Sentada ao lado da filha, imóvel, com a postura enrijecida e o olhar distante como se a alma tivesse se separado do corpo, dona Lúcia deu sinal de vida ao ouvir chamar pelo seu nome, “Lúcia de Abreu!”. Sua vez de ser atendida finalmente tinha chegado. Isa levantou-se, guardou rápido o celular no bolso, ajudou sua mãe a levantar, arrumou a máscara dela, que estava deixando o seu nariz à mostra, e foram juntas até a sala do médico. Lá o doutor conferiu o exame de urina e informou, para o alívio das duas, que dona Lúcia não apresentava um nível grave de infecção urinária, receitando-lhe apenas um remédio.
Agora mais calma por saber que a mãe não iria ficar novamente catatônica, Isabel agradeceu ao doutor e logo deu um jeito de rapidamente sair com dona Lúcia daquele local totalmente propício à proliferação de Coronavírus.
Durante a volta para casa, Isa arrumou a máscara de sua mãe mais uma dezena de vezes no banco de trás do carro que chamou pelo aplicativo e precisou ter paciência para aturar as manhas da idosa, que a cada minuto perguntava se estavam chegando, pois estaria "muito apertada para fazer cocô", algo que falava sempre que rinha vontade, sem se preocupar em ser discreta. E eles chegaram rápido, para o alívio de todos: de dona Lúcia, é claro, que poderia matar a vontade; de Isa, que já estava morrendo de vergonha por causa da indiscrição da mãe; e do motorista, que até tentou disfarçar a preocupação, mas não foi nem um pouco sutil ao ir verificar, logo após o desembarque, se o acento no qual elas estavam permanecia limpo.
Isabel pediu desculpas, fingiu não ligar, deixou o dono do carro com suas suspeitas, abriu o seu portão e subiu o mais rápido possível os três lances de escadas até a sua casa, que fica em cima de uma lotérica, em frente a uma das praças mais movimentadas do bairro de Vila Ema. Nunca subiram os degraus tão depressa. Porém, não foram velozes o suficiente: para a infelicidade de Isa, dona Lúcia soltou o que estava prendendo há tempos na fralda mesmo. “Mas não poderia aguentar só mais um pouquinho”, pensou alto Isa, que levou imediatamente sua mãe ao banheiro para se livrar da caca que ela havia feito.
— Eita, quem diria, eu virar babá de uma bebezona de setenta anos — disse Isa, ironicamente, enquanto tirava a fralda da mãe.
— Me desculpe, Isabel, eu não aguentei — lamentou dona Lúcia, com seu olhar distante, virada para a parede de azulejos brancos do banheiro.
Isabel morava com os seus dois gatos e seu marido, Eduardo, que estava viajando a trabalho na China, onde iria ficar por mais um mês ajudando a organizar alguns eventos empresariais, os quais já teriam sido adiados diversas vezes desde o ano passado por causa da pandemia. Ele até cogitou recusar o trabalho, nunca tinha ficado tão longe da esposa, mas, tendo em vista a escassez de trabalho que o Covid-19 causou, achou melhor aceitá-lo. E Isa também estava passando por um momento difícil profissionalmente: em períodos de Lockdown (confinamento), crise sanitária e econômica, ela, que atuava como Social Media, viu sua cartela de clientes reduzir drasticamente, ficando somente com dois deles, dos quais, além de tudo, teve que passar a cobrar menos. Isa e Edu não tinham filhos, apenas os gatinhos, mas estavam tentando ter um. Tinham iniciado um tratamento de fertilidade desde o ano passado e pretendiam retomá-lo quando os eventos chineses terminassem.
Gerar um bebê era uma das prioridades de Isabel. E muitas vezes, em seus dias de mais fragilidade, ela remoía o pensamento de estar designada a sofrer com as artimanhas de um destino ingrato: pensava que talvez não poderia ter uma criança para que pudesse cuidar de sua mãe. Algo que não fazia muito sentido, mas que ajudava a engrossar ainda mais o seu caldo de angústias.
Consciente do mal vindo de pensamentos desse tipo, Isa buscava sempre exorcizar tais ideias. Assim como exorcizou, com incensos, aromatizantes e um ventilador, o forte cheiro deixado pela fralda geriátrica recém trocada da mãe.
— Por Deus, hein, dona Lúcia! Acho que vou precisar colocar um incensário em cada canto da casa — disse Isa, em tom de brincadeira.
Passaram-se alguns minutos e Dona Lúcia já estava de banho devidamente tomado e pronta para descansar no quarto em frente ao da filha, o qual, em sua cabeça, já havia sido sacramentado como seu novo dormitório desde agosto do ano passado, quando abandonou sua casa na zona norte da cidade. A ocupação de caráter definitivo de dona Lúcia pegou de surpresa a proprietária da residência e do cômodo em questão, Isabel, que idealizava uma velhice bem diferente para a mãe: para ela, a velhice de dona Lúcia seria marcada por sessões de crochê e pausas nas tardes quentes para comer mexericas no quintal, mas, principalmente, pela distância entre as duas. Isa custava a aceitar o futuro que estava se desenhando, sobretudo porque entre ela e a mãe não havia aquele grande afeto que costuma existir na relação entre mães e filhas. O que havia, na realidade, era um vazio, um abismo entre as duas, que foi ficando cada vez mais extenso conforme as mágoas, as ofensas e as brigas foram se acumulando ao longo da vida.
Dona Lúcia começou a apresentar sintomas de bipolaridade em sua fase adulta, transtorno que ficou ainda mais acentuado com a morte de seu marido Ricardo, pai de Isabel, que faleceu em decorrência de um câncer no estômago. Sem uma figura paterna desde os quinze anos de idade, Isa vivia só com sua mãe e seu tio Juca, e, durante toda a adolescência, teve que conviver com os fortes arranca-rabos entre os dois. As constantes mudanças de humor de dona Lúcia quando mais jovem faziam ela ter problemas de convivência social, exclusivamente quando se tratava de relação familiar. Quase todos seus parentes próximos eram vistos como inimigos: seu irmão do meio Juca, sua irmã mais velha Catarina e, é claro, sua filha. Anos depois, Isa descobriu através dos médicos que sua mãe não sofria apenas por ser bipolar, mas também expunha traços do chamado narcisismo materno, o que a transformava em uma mulher abusiva. Dona Lúcia constantemente fazia uso de tortura psicológica para diminuir a filha, colocando-a para baixo para que, assim, pudesse manipulá-la.
De modo que, conforme ia crescendo, Isabel só queria manter distância da mãe. E, hoje, já adulta, tornou-se muito difícil para ela conseguir aceitar essa reaproximação forçada.
A soneca de dona Lúcia depois do banho durou pouco, pois Isabel, após duas horas, já estava abrindo a porta do quarto novamente, ascendendo a luz e despertando a mãe.
— Hora de acordar, mãe! — falou alto Isa. — Vamos, dona Lúcia!
Era necessário acordá-la, até porque o sono deveria ser preservado para a noite, período em que dona Lúcia costumava expor seus devaneios quando estava muito agitada. Muitas vezes, de madrugada, era possível ouvi-la abrindo e fechando, sem motivos, as portas de seu armário; ou indo e vindo do banheiro a passos pesados com seu chinelo barulhento; ou tropeçando em um dos bichanos no breu noturno. Em noites como essas, Isa tentava se manter na cama o máximo possível, mas se tornava inevitável sair do aconchego do edredom quando sua mãe pedia socorro: dona Lúcia fazia questão de gritar o nome da filha, chamando-a sempre de“Isabel-ô!”. No começo, ela achava até engraçado, mas, com o tempo, nada a deixava mais nervosa do que ser chamada dessa forma. E na maioria das vezes, quando a vogal “o” vinha no término de seu nome, era sinal de que Dona Lúcia já estava fora de si, ora agachada no chão com uma poça de urina em volta, ora dizendo ser atormentada por visões de coisas, como algodões, peixes ou caixas coloridas.
As alucinações atormentaram muito dona Lúcia nas suas primeiras semanas na casa nova, mas foram sendo controladas conforme Isa lhe dava os remédios de forma correta. De acordo com o psiquiatra que atendia sua mãe no centro de Atenção Psicossocial (CAPS), as visões da idosa teriam piorado por ela estar tomando a medicação de forma errada. Isabel ia à casa de dpna Lúcia a cada quinze dias para organizar os comprimidos numa caixinha. Ela deixava um papel com explicações sobre como tomar os medicamentos e toda as vezes ressaltava: “Mãe, preste atenção, é sempre um do comprimido gordinho e dois dos pequenininhos, entendeu? ”
Dona Lúcia falava que havia entendido, mas frequentemente sobravam ou faltavam um ou dois dos mais gordinhos (Valproato) e alguns dos pequenos (Risperidona). O descontrole quanto à periodicidade da medicação e a falta de adesão aos tratamentos não se tratava de algo recente na vida de dona Lúcia. Isabel viu a sua mãe sucumbir mentalmente pela primeira vez pouco tempo depois que seu pai faleceu. À época, dona Lúcia estava com seus trinta e seis anos e precisou ser internada por dez dias no Hospital das Clínicas, na zona oeste de São Paulo, devido a uma crise bipolar. Foi nesse tempo que o drama das duas começou a tomar proporções maiores. Na memória de Isabel ainda estava preservava a imagem de sua mãe fazendo escândalo e implorando a ela para que a tirasse do hospital — aquela teria sido a primeira de muitas vezes que Isa tinha se sentido culpada mesmo sem ter culpa nenhuma.
Desde então, dona Lúcia nunca mais deveria parar de tomar remédio. Receitaram-lhe o famoso Lítio. E ela até seguiu à risca as orientações médicas por algum tempo, mas quando já estava beirando os sessenta, achando estar livre de todo mal, parou por conta própria de usar o medicamento, o que a levou ao ponto que está hoje.
Dona Lúcia estava, atualmente, apresentando sintomas de demência, que poderia estar ou não associada ao Alzheimer. E isso era algo que Isa, agora com a mãe definitivamente hospedada em sua casa, iria descobrir em um psiquiatra particular, marcado para a manhã seguinte, no bairro da Mooca.
— Já falei para levantar, mãe! Está na hora do jantar — intimou Isa pela segunda vez.
— Ah, não. Não quero comer — resmungou Dona Lúcia.
— Vai comer, sim. Os seus remédios são fortes e é preciso estar com o estômago forrado — explicou Isa.
Dar-lhe a medicação era só uma das várias responsabilidades de Isabel para com dona Lúcia. Seu dia com a mãe era composto por: servir-lhe as refeições; ajudá-la no banho; auxiliá-la durante a realização de suas necessidades no banheiro, principalmente quando se tratava do número dois; criar passa tempos, exercícios e distrações para o seu desenvolvimento mental; levá-la para passear na praça e uma série de outras coisas. Com tudo isso, era raro ter sossego para fazer o seu trabalho, mesmo sendo home office. No início ainda tinha a ajuda do marido, mas, com a viagem dele à Ásia, ela teve que se dividir em dez para dar conta de suas novas tarefas e ainda cumprir os prazos profissionais.
Atendendo às ordens da filha, dona Lúcia tentou se levantar por conta própria para jantar, mas precisou de ajuda para sair totalmente da cama. Sua capacidade de locomoção oscilava muito: às vezes ela subia escada, abaixava e levantava e mudava suas coisas de lugar, tudo de maneira fácil. Porém, em outros momentos, parecia ter toda a sua musculatura atrofiada.
— Vamos logo, mãe! Eu vou servir o jantar para a senhora e ainda tenho que tirar umas fotos para o meu trabalho — disse Isa, enquanto a ajudava a se levantar.
— Você vai tirar foto com aquela máquina que lhe dei uma vez de aniversário, não é? — perguntou dona Lúcia.
Se formos listar as qualidades de dona Lúcia, uma delas seria com certeza a sua responsabilidade com relação às finanças. Austera com o controle de seus ganhos, nunca ficava no negativo e salvou algumas vezes Isabel de apertos financeiros. O problema é que ela usava seus empréstimos e seus presentes para preencher o espaço aberto pela falta de empatia e carinho. Além disso, sempre que podia, atacava na cara da filha toda a ajuda que lhe dava. Isabel percebia nas palavras de dona Lúcia, mesmo ela estando debilitada, uma grande dose de maldade. Geralmente, a amorosidade de Isabel se esvaia conforme suas más lembranças eram reavivadas por atitudes e comentários da mãe.
Quando dona Lúcia deixava a porta aberta para os gatos fugirem, por exemplo, Isa se recordava do descaso da mãe com os animais: dona Lúcia teve a frieza, certa vez, de dar sumiço na cadelinha prenha que a filha amava porque não queria ter trabalho com os filhotes que estavam prestes a nascer no quintal. E quando falavam sobre as comemorações de seus aniversários na infância, Isabel inevitavelmente lembrava das vezes que foi humilhada por motivos banais durante as festas, propositalmente na frente dos coleguinhas. E quando via a sua mãe exigindo-lhe atenção e cuidados, ela não conseguia deixar de lembrar do ato que mais alimentou o seu rancor: lembrava-se angustiadamente do dia que dona Lúcia a expulsou de casa.
— Sente-se, por favor — pediu Isa. — Enquanto a senhora come, vou tirar as fotos que vou usar no trabalho amanhã. Depois, a senhora vai dormir. Amanhã bem cedo tem médico de novo — lembrou ela.
— Será que você não pode jantar comigo? — resmungou dona Lúcia. — Vai me deixar sozinha de novo! Estou sempre sozinha! — reclamou.
Enquanto reclamava, sentada à mesa, dona Lúcia soltou mais alguns resmungos, fingiu nitidamente uma falsa fraqueza dos membros e, com um movimento desajeitado, derrubou o prato cheio de comida no chão. Isabel, totalmente alterada com aquela cena, viu sua mãe tentando roubar sua paz e sua liberdade como tentou a vida inteira, e não suportou: pegou a idosa pelos seus frágeis ombros, chacoalhou-a e libertou as palavras aprisionadas dentro dela durante muito tempo.
— Pare de fingir e pedir atenção. Eu não tenho obrigação de cuidar da senhora — gritou Isabel, transtornada. — A senhora me expulsou de casa, se lembra? Quando disse que iria ficar noiva, a senhora, possessiva como sempre, não aguentou me ver liberta de sua prisão e me chutou para fora como se eu fosse um animal — desabafou ela.
Angustiada e com o rosto avermelhado, em prantos, Isabel chegou bem perto da mãe, olhou-a bem nos seus olhos sempre vagos e a interrogou:
— Você se lembra? Lembra? Vamos resolver isso! Entre mãe e filha! Diga que se lembra! — gritou.
Dona Lúcia ficou trêmula, em estado de choque, com o olhar direcionado para o nada. Mas, conforme a filha ia se recompondo do ataque de fúria, ela passou a repetir baixinho:
— Não, eu não fiz isso. Não fiz isso. Não fiz, Isabel.
***
Na manhã seguinte, mesmo esgotada por tudo que ocorreu na noite passada e por ficar trabalhando até tarde, Isabel acordou cedo para levar dona Lúcia ao psiquiatra que ficou de avaliá-la. Saber que sua mãe poderia ter Alzheimer deixava Isa muito aflita, pois sua tia Catarina tinha desenvolvido a doença já havia alguns anos, o que a fez perder quase toda a autonomia.
Dona Lúcia acordou disposta, mais calada e pálida além do normal, porém bem e obedecendo disciplinadamente o que a filha lhe pedia. Isabel e ela chegaram meia hora antes do horário marcado e foram atendidas antecipadamente.
Chegando à clínica, o psiquiatra recebeu as duas com um jaleco todo fechado, luvas cirúrgicas e com uma exagerada proteção feita de acrílico na cabeça, resguardando todo o rosto do temido Coronavírus — o que deixou a idosa muito impressionada. Ele abriu os exames, falou um tempo sobre o caso de dona Lúcia, forneceu algumas informações a mais e, enquanto a perna tremulante de Isa flagrantemente denunciava sua apreensão, deu a fatídica notícia às duas. Ele disse que a demência de dona Lúcia estava mesmo ligada ao Alzheimer, o qual ainda estava no início, mas que poderia se agravar com o tempo.
Ao final da consulta, ao sair do centro médico, Isabel, que estava claramente apática, parou um pouco na calçada para respirar e tentar assimilar a notícia que tinha acabado de receber. E foi nesse momento que dona Lúcia, parada ao seu lado, tirou a máscara que tantas vezes caia de seu rosto, olhou fixamente para a ela e lhe perguntou:
— Isabel, eu estou com Alzheimer como a sua tia Catarina? Eu vou esquecer as coisas como ela?
Isa tentou buscar palavras para amenizar a situação, mas permaneceu inerte.
— Porque, se vou esquecer de tudo, eu queria lhe dizer uma coisa antes — disse dona Lúcia. — Preciso lhe pedir perdão — revelou ela.
— Perdoar por quê, mãe? — perguntou Isa, com os olhos angustiados.
— Me perdoe...Me perdoe por tudo! — falou dona Lúcia, com os olhos lagrimejados e exibindo uma lucidez que há muito tempo não exibiam.
Naquela hora, Isa sentiu sair de seus ombros o peso de toda uma vida com o gesto inédito da mãe. Ela respirou fundo, controlou a emoção, trançou seu braço no de dona Lúcia e lhe disse:
— Sim, mãe. Eu te perdoo. Vai ficar tudo bem. Vamos embora agora. E coloca essa máscara...