Uma incógnita

Era chamado de Tio Bento. Perambulava pela cidade no meu tempo de criança. Quieto, baixinho, com bigode farto e sempre vestindo um casaco preto bem cortado, Tio Bento era considerado um mal-trapilho. O casaco certamente tinha sido presenteado por alguém importante da cidade, pois ele não o tirava nem no dia mais quente do ano. Costumava caminhar com a cabeça baixa, um tanto corcundo e carregava nas costas um saco recheado de ervas medicinais. As mesmas eram separadas cuidadosamente em montinhos arrematados com cordão.

E assim o Tio Bento caminhava pela cidade, sendo abordado pelas pessoas para compra de um ou mais chás. Ele sempre os recomendava com propriedade e, dessa forma, angariou respeito e simpatia.

Mas a sua vida sempre foi uma incógnita. Sabíamos que ele residia em um sítio abandonado no interior onde plantava suas ervas. Sua casa era coberta por folhas de zinco desparceiradas com frestas enormes, que certamente vertiam água em dias de chuva. Vivia uma vida tão simples que não conseguíamos imaginar como um homem como ele conseguia “receitar” chás com tamanha efetividade. E dessa forma ele viveu pelas ruas da cidade por muitos anos.

Lembro-me de minha mãe aguardar a passagem do Tio Bento para comprar chá para suas dores de cabeça e cólicas.

Então aconteceu. Certo dia, ouvindo a única rádio AM da cidade a população tomou conhecimento de que o Tio Bento havido sido encontrado sem vida no sítio, possivelmente uns três dias após a sua morte. Segundo relatos, foi encontrado caído no canteiro de erva santa, justamente a erva que ele mais vendia, por ser recomendada pelo seu grande número de propriedades.

A movimentação que se seguiu todos estranharam: pessoas de outras cidades chegando, fazendo fotos da propriedade, entrevistando moradores, buscando documentação e, em alguns casos, até propondo pagamento para quem fornecesse algum subsídio sobre a sua vida.

O tempo passou e a população esqueceu o ocorrido. o Tio Bento continuou na lembrança e curiosidade da cidade. Até que o mistério foi esclarecido, para surpresa de todos. O lançamento de um livro de pesquisa escrito por um historiador revelou que ele fazia parte da genealogia da família do maior farmacêutico prático conhecido no estado.

Restou a resposta para o questionamento sobre o porquê ele havia escolhido viver uma vida tão simples, vendendo seus chás a tão poucos mil réis.

Escrito para a Oficina Provocações - Módulo 02 (Pragmatha Editora)

Rosalva
Enviado por Rosalva em 04/05/2021
Reeditado em 04/05/2021
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