A Faca Tem Dois Gumes
O ano de 1995 começou com Luiz Alves da Silva saindo do curso de mecânica automotiva. Um jovem de 20 anos cheio de sonhos e aspirações, que adorava tecnologia, desenhava bem e queria personalizar carros. Seu maior sonho era montar sua própria oficina de personalização automotiva.
A dura realidade do país fez ele passar seis longos meses em busca de um emprego em sua área. Passou fome, teve serviços como luz e água cortados, viu sua mãe se matar de trabalhar sentada atrás de uma maquina de costura e varias contas se acumularem.
Luiz não desistiu. Recusou propostas de emprego em redes de fastfood e nas empresas de telemarketing, que estavam em ascensão na epoca. Em uma noite, depois de chegar da panfletagem de currículo que fazia, viu sua mãe orando de joelhos, tirou os sapatos gastos e orou ao lado dela.
No dia seguinte conseguiu uma entrevista logo em uma das maiores oficinas de sua cidade, a grande MacroStar. Luiz pôs sua melhor roupa, seu melhor calçado e foi para a entrevista. Entrou decidido na dinâmica de grupo e encantou a todos com seu jeito carismático, engraçado e simpático. Luiz foi aprovado sem ter que passar pela prova prática.
Luiz se dedicava e dava tudo de si naquele emprego. Lembrava das contas, do que passou com sua mãe e em seu maior sonho. Esso era o combustível que fazia ele não chegar atrasado, ser o primeiro a chegar e o ultimo a sair e a fazer horas extras. Em pouco tempo se tornou o "menino de ouro" dos patrões. Em um ano ganhou 7 vezes o prêmio de funcionário do mês e com sua simpatia fez as vendas da loja crescerem.
É claro que tudo isso lhe trouxe grandes benefícios, como prêmios em dinheiro e a afinidade com os patrões. Mas também lhe trouxe alguns malefícios, como inimizades, inveja e a perda de sua vida social. Alguns colegas de trabalho o odiavam e sua mãe sentia falta dele em casa.
Em setembro de 1997 o castelo de Luiz começou a ruir. Primeiro veio a noticia de que sua mãe estava com câncer de mama. Depois um grupo de funcionários, que o odiavam, criaram um esquema e o acusaram de desvio de verba das vendas da loja.
A acusação de roubo quase levou Luiz a depressão. Em sua mente um negro, pobre e favelado no Brasil jamais sairia ileso de uma acusação dessa. Porém, foi um tiro na culatra de quem o odiava. Para evitar burburinhos na imprensa, o dono da MacroStar resolveu investigar a situação internamente e acabou descobrindo tudo.
Os funcionários que armaram contra Luiz foram demitidos e o rapaz ainda ficou amigo do dono. Durante a investigação, Claudio Serla, o dono da MacroStar viu o quanto Luiz era valioso e tentou promovê-lo, mas Luiz achava que em sua posição ganhava mais e rejeitou. Claudio admirava a determinação e a dedicação de Luiz.
Em 2000 Luiz e Claudio já eram amigos íntimos. Claudio pagou todo o tratamento da mãe de Luiz e eles venceram o câncer. Nesse período a filha de Claudio, a jovem Amanda Serla, se apaixonou por Luiz e os dois começaram um relacionamento.
Nessa epoca o filme Velozes e Furiosos estava em alta e a oficina estava bombando. Luiz vendia peças de personalização como água no deserto. Um dia Amanda estava limpando o quarto de Luiz e encontrou um caderno de desenho. Nele havia uma infinidade de carros personalizados desenhados a mão por Luiz e ela o levou para seu pai.
O ano de 2001 começou com Luiz comandando a divisão de personalizados da MacroStar. Muitas pessoas procuravam a oficina para personalizar seus carros. Luiz criava o design, desenhava o protótipo a mão, passava para o computador, fazia o orçamento com os itens vendidos na loja da MacroStar e a oficina personalizava os carros.
Os anos passaram. O relacionamento entre Luiz e Amanda não deu certo, pois ele vivia para o trabalho. A MacroStar se tornou referência em personalização no Rio de Janeiro e abriu várias filiais no estado. Mas o sonho de Luiz ainda não estava completo. Ele queria ter seu próprio negócio. Ter a sua própria oficina. Fazer as coisas do seu jeito e não ter que apresentar projetos para alguém autorizar.
Em 2018 Claudio faleceu e deixou tudo para seu filho mais velho, Anderson Sarle. Luiz fez uma reflexão sobre sua vida e decidiu que era a hora de abandonar o barco para realizar o seu maior sonho. Se reuniu com Anderson e pediu para ser demitido.
Anderson tinha fama de ser orgulhoso e sempre teve ciúmes da relação de Claudio com Luiz. Por isso Luiz teve muito receio do que poderia acontecer. A reunião fora marcada para as 14 horas de um quarta-feira.
Luiz entrou na sala de Anderson como entrou naquela entrevista anos atrás e foi direto ao assunto. Sem muita delonga informou sua vontade de sair para começar o seu próprio negócio, viver como uma pessoa normal e talvez montar uma família. Disse que sentiria saudade e que a MacroStar não seria afetada, já que ele e os funcionários eram capacitados para mantê-la. Anderson ouviu tudo sem expressar qualquer reação.
Depois que Luiz terminou, Anderson sorriu para ele, abriu uma gaveta e tirou uma pasta de dentro. Luiz estranhou e esperou. Anderson abriu a pasta, folheou alguns papéis e olhou para Luiz com ar de deboche. Luiz aguardou. Anderson disse que a MacroStar estava prestes a abrir mais uma filial e queria que Luiz coordenasse esse ultimo projeto, depois disso o liberaria.
Luiz aceitou o acordo, mas com muita raiva e sem muito entusiasmo. Ele fez a planta da nova loja de qualquer jeito, contratou qualquer serviço de obra, comprou os piores materiais de construção e não se empenhou na compra dos aparelhos da loja. Essa foi a primeira vez que ele não se doou 100% em um projeto.
A obra acabou, só faltava pôr o letreiro e contratar o pessoal. Anderson foi fazer a inspeção do lugar e chegou com uma pasta de documentos. Luiz estranhou. Anderson abriu um sorriso, o chamou de irmão e mandou ele pôr o nome que ele quisesse na loja, pois a loja era dele e esse era o desejo de seu pai. Antes de morrer Claudio soube através de Amanda dos sonhos de Luiz e mandou Anderson realizar o tal sonho.
Luiz ficou muito surpreso e chateado. Se ele soubesse que estava construindo sua própria loja teria feito tudo diferente. Claudio foi um grande pai e amigo, até em sua morte foi bom para ele. Anderson foi embora e Luiz sentou cabisbaixo lembrando do mandamento de Jesus, que sua mãe sempre repetia: "Amai o próximo como a ti mesmo."
Infelizmente não dava para voltar atrás. Luiz chorou desgostoso de si mesmo, indignado por sua falta de consideração para com Claudio, que mesmo depois de morto continuou sendo um grande amigo. Agora estava desempregado e teria que gastar o triplo de dinheiro para pôr aquela loja do jeito certo.