A EXPEDIÇÃO
Mesmo retiradas dos escombros, as esculturas não faziam sentido para eles. Usassem ainda a mesma linguagem, saberiam que aquela procissão de formas caiadas e gastadas formava uma palavra: “Jandira”, mas ainda assim esse nome não lhes seria familiar. O mais experiente deles, que comandava aquele grupo de exploradores, inferiu que seria algum tributo perdido. Aproximou-se das letras, maiores que um homem em pé, mas não encontrou qualquer indício que lhe interessasse. Anota num caderno gasto um conjunto de formas aqui irreproduzíveis, meneia a cabeça em direção ao grupo e aponta para a descida do monte, sugerindo que continuassem sua pequena caravana.
O ar daquele lugar era menos espesso e polvoroso que de toda a região que caminharam até então. Deu-lhes vontade mesmo de retirar a máscara bicuda e os óculos protetores que escondiam suas faces, mas atentos ao risco, mantiveram. Nunca retirar as máscaras, era algo que aprenderam desde criança. Despir a face era agora o pudor de várias gerações. Mesmo as roupas pesadas, de couro batido, que vestiam tinham menos importância que a máscara, sendo sua retirada ao léu uma heresia punida com não menos que exílio.
Foram dias de caminhada, recolhendo tudo o que lhes seria útil no caminho, o que era oportunidade rara. Nos quilômetros e quilômetros desde seu abrigo mantido em eterna quarentena até ali o cenário era o mesmo: Ruínas, resquícios do engenho humano de outrora. Praticamente nada havia se sustentado mais que um ou dois metros além do chão. Pouca coisa sequer era reconhecível. Material gasto, torcido e descolorido. Não fosse esse o cenário que todos eles conhecessem desde o nascimento, seria espantoso o estado das coisas. Sabiam que o “Vírus”, a palavra que não se pronuncia, a mística entidade do mal, o ser maléfico, havia tornado tudo assim como todos agora conhecem, mas estes desbravadores eram os únicos que ainda tinham o infeliz regalo de ver isso com os próprios olhos, se aventurando além dos muros do couto de sua tribo.
Mas ali eles finalmente se espantaram. Ao descer a modesta colina, puderam observar a região. Construções que, não fosse pela ação simples da natureza e do abandono, se sustentavam em pé. Casas, carros, um viaduto e uma sorte de edifícios que, não fosse as vinhas, musgo e outras punições menores, se mostravam habitáveis e até conservadas.
O grupo desce a colina com um misto de alarme e entusiasmo, em direção a grande área ao descoberto próxima dela. O chão, ao invés do asfalto destruído dos caminhos que seguiram, era pavimentado e pintado. Alguns carros estacionados ali poderiam até funcionar, se alguém do grupo ainda dominasse a habilidade, ou mesmo soubesse o que aquelas latarias retorcidas que viam em todo lugar eram um meio de transporte comum.
Examinando todos os cantos, outra peculiaridade: A ausência de corpos. A visão que era comum de ossadas em toda a região parece que havia terminado além das fronteiras daquela área. Não havia nada que indicasse a presença humana, como se tivessem abandonado aquele lugar, o deixando intocado. O que era ainda mais assombroso, pois a destruição que assolou o mundo parece não ter chegado ali.
O grupo seguiu tentando entender o que ocorreu. Um dos homens, se destacando dos outros, aproximou-se da construção de teto côncavo mais distante do pátio em que estavam, onde em uma flâmula quase inteiramente queimada se poderia ler “A PAIXÃ...”. Atônito ao examinar o chão, grita pelo líder do grupo.
O grupo de aproxima dele, no momento que resgatava do chão um livro também queimado, próximo aos únicos ossos humanos que ali estava. No chão, o grupo percebe o que o espantou. Uma grande mancha carbonizada, com pontas para todas as direções, como se uma estrela tivesse incandescido ali, assim como queimou o chão, queimou o livro e o desafortunado que deveria carrega-lo.
O líder do grupo pega o livro da mão do outro, e é questionado, em sua língua simplória, por um dos homens:
- Parece que tudo terminou aqui, então?
O líder folheia o livro com todas as páginas queimadas, exceto por quase uma. Reflete por um momento, e responde.
- Não. Parece que aqui foi onde tudo começou...
Na página quase toda queimada, algumas formas podiam ser vistas enfileiradas, formando uma parte de palavra: “APOCALIP...”