Mais do que Destino

Acidente. Palavra que se relaciona a eventos que nos pegam de surpresa, que são desagradáveis e que geralmente resultam em algum dano, material ou sentimental. Fato é que só de ouvir o termo muitos de nós torcem o nariz, lembram-se de histórias tristes que não gostariam de ter vivenciado, que foram obrigados a experienciar sem o menor aviso prévio. Mas nem sempre é assim. Não existe o ditado de que há males que vêm para o bem? Acidentes acontecem e podem resultar na melhor experiência de nossas vidas.

A rodovia estava molhada. A chuva do dia inteiro deixara a estrada bastante encharcada, com poças ao longo do seu percurso. Ainda chovia. Não tão forte quanto nas outras horas, mas ainda assim o bastante para dificultar a visão do motorista que, além de lidar com um para-brisa atacado por densas gotas d’água que caíam do céu, ainda batalhava contra pesadas gotas d’água que eram expelidas de seus olhos. Um término. Da forma mais brutal possível. Se morresse naquela estrada pouco se lamentaria, a vida parecia mesmo um interminável pesadelo repleto de fatos terríveis demais para serem humanamente suportáveis.

A velocidade estava além do limite para uma noite como aquela.

Pensou ter visto algo no meio do caminho.

Desviou do fruto da sua imaginação com desespero, querendo poupar o que quer que fosse aquilo.

Tudo o que conseguiu foi romper as barras do acostamento e chocar o veículo contra um muro de terra molhada.

***

Aquele dia não poderia piorar. Chegara ao trabalho como se tivesse acabado de sair do chuveiro e colocado as roupas sem nem se secar. Percebeu que a encaravam de um jeito estranho, como se quisessem ter misericórdia por ela, como se ela precisasse começar a suplicar piedade. Seu chefe a chamou, estava sério. Mal teve tempo de repousar o guarda-chuva no canto do escritório, recebeu a informação de que estava sendo despedida. Agora os olhares faziam sentido. Agora o dia que começara mal anunciava o quão pior poderia ser. Mas ela quis acreditar que as mazelas de seu dia ficariam por ali.

Foi afogar as mágoas no restaurante que tanto apreciava. Na hora de pagar a conta percebeu que não levara o cartão. Estava atrasada quando saiu de casa, quando nem imaginava o que a esperava na empresa onde trabalhara por seis anos, da qual saía com a cabeça erguida por ter se dedicado tanto ao mesmo tempo em que frustrada e irritada. Precisou que lhe emprestassem dinheiro, mas era orgulhosa demais para aquilo, aqueles que a ouviam perderam a conta de quantas vezes ela se justificou contando a história do cartão.

Entrou no carro. Fechou a porta como se ela fosse a culpada de tudo de terrível que acontecera e que poderia acontecer na sua vida. Olhou firmemente para frente, tudo que seus olhos enxergavam era a tempestade que fazia o meio-dia parecer final da tarde. Finalmente se rendera. Começou a libertar o choro de decepções sobre o volante que sentia a pressão de seus dedos nervosos. Adormeceu ali mesmo.

Acordou desesperada com alguém batendo no vidro do carro. Ficou surpresa por estar tudo densamente escuro, questionou-se sobre o tempo que ficara ali. Era hora de encarar a vida e voltar para casa.

A estrada estava molhada. Sempre tão prudente, mantinha a velocidade num ritmo seguro. Apesar de estar completamente desapontada com os últimos acontecimentos, não queria desistir da vida, não queria que uma noite chuvosa marcasse o seu último dia na Terra. Estreitando os olhos viu pelo retrovisor um carro se aproximar. Passou ao seu lado numa agilidade surpreendente para as condições da estrada. Observou o veículo mudar de posição repentinamente. Estupefata, assistiu ao acidente.

***

O choque contra o muro de terra foi impactante. Se não estivesse usando o cinto de segurança André poderia ter sofrido algo pior do que um vermelhão na região que o acessório pressionara. Por alguns segundos foi incomodado por um zunido no ouvido enquanto os olhos tentavam recobrar a harmonia sobre o que enxergavam.

— Droga! — falou desanimado, como se as forças tivessem se exaurido naquele instante, como se tivessem sido levadas pelas águas lá fora. Retirou o cinto sentindo dor no braço. Suspirou fundo. Mas não o bastante para conter suas agressões descontroladas sobre o volante que nada devia.

— Moço? — ouviu uma voz abafada soando ao longe, mas continuou no ataque de fúria —. Moço?! — a voz insistiu, mas sua raiva era grande demais para que fosse interrompida por uma voz que ele julgava estar vindo do além.

Preocupada quanto ao que poderia ter acontecido, Marina estacionou a alguns metros depois do local do acidente. Armou o guarda-chuva sentindo alguns respingos atingirem seus braços. Dirigiu-se até o carro amassado.

— Moço? — viu um sujeito nervoso batendo no volante —. Moço?! — insistiu um pouco mais alto, sem resultado —. Moço??!! — abriu a porta chacoalhando o homem revoltado.

— O que foi? — André respondeu rispidamente encarando a mulher assustada.

— Você está bem? — Marina perguntou automaticamente.

— Eu estou ótimo! — André falou em alto som —. Minha noiva me traía e meu carro está atolado na lama. Veja só como estou maravilhoso! — naquele momento fechou os olhos, suspirou mais uma vez, não queria ser grosseiro com alguém que nada tinha a ver com os seus problemas —. Não me leve a mal... Eu só não sei o que está acontecendo comigo...

— Você precisa vir comigo — a mulher sugeriu —. Vamos ligar para alguém vir resolver o problema, mas é melhor esperarmos no meu carro...

— Tudo bem... — apenas aceitando, sem a menor ideia do que precisaria fazer, o homem azarado se juntou à mulher prestativa, alguém desconhecido que lhe oferecia ajuda.

Um silêncio constrangedor se manifestou.

Um silêncio que precisava ser afastado.

— Dia difícil? — Marina perguntou deixando de lado suas próprias adversidades.

— Quando pensamos que não pode piorar... — apontou para o carro sorrindo desconsolado.

— Eu espero que tudo se resolva.

— Na verdade já está. Minha noiva me traía. Quando me falaram eu não acreditei, queria confiar nela, queria dar uma chance a esse negócio que chamam de amor. Tive que ver com os meus olhos aquilo que negava no coração... — abaixou a face, observou os próprios dedos, por algum momento desejou que tudo não passasse de um sonho —. Quero distância dela. Quero distância dessa invenção chamada amor. Quero estar seguro de todas essas bobagens...

— É exatamente isso que dizem que não devemos fazer... Achar que tudo será a mesma coisa para sempre. Há outras pessoas no mundo, você não pode se esquecer disso.

— Não como ela...

— Não quero que pense que estou me intrometendo, mas, ninguém é bom demais para que não possa ser substituído. Eu fui demitida — falou como se estivesse espantada —. Tenho certeza de que hoje mesmo já colocaram alguém no meu lugar... Eu sei que com relacionamentos é diferente, a gente se liga às pessoas e confia nelas, mas se essa confiança não foi valorizada é porque a parte que a rompeu não a merecia. Não foi você quem brincou com os sentimentos de alguém. Não pode ser você o punido por toda essa tragédia.

As palavras foram bem colocadas. Chamaram a atenção do professor de educação física que levou o olhar para a moça ao seu lado, prestou mais atenção nos olhos que brilhavam apesar da noite escura. Quem era ela?

— Estou numa terapia e não sei?

— Garanto que eu não seria uma boa terapeuta... Mas aprendi o que falei. Eu já estive no seu lugar antes.

— E conseguiu recomeçar?

— Eu não quis recomeçar. Estava entretida demais com o meu trabalho. Enquanto dirigia percebi que isso pode ter sido a melhor coisa que tenha me acontecido. Eu estava me exigindo demais e sendo valorizada de menos. Talvez esteja na hora de fazer o que eu gosto, estar com quem me importo... Enfim, talvez esteja na hora de viver...

— A vida é confusa... — André concluiu sorridente —. Por que estamos aqui?

— Eu não sei... — Marina abriu o sorriso tentando encontrar uma resposta —. Até ontem eu era contadora...

— E eu me preparava para casar...

— Estava feliz? — perguntaram em uníssono, acabaram gargalhando.

— Achava que estava. Agora sei que eu estava confortável — Marina respondeu.

— E eu estava seguindo a tradição, mas sem saber... — André assumiu —. Talvez eu não quisesse me casar de verdade, talvez não fosse esse o meu destino. Por que eu tinha que estar aqui hoje? Por que eu tinha que sofrer um acidente e ser socorrido por uma pessoa que nunca vira antes?

— No que você acredita?

— Eu não sei... Destino?

— Pode ser mais do que destino — Marina encarou o olhar curioso de seu ouvinte, deu um singelo sorriso, permitiu que as mãos se tocassem brevemente —. Pode ser mais do que destino...

O silêncio retornou enquanto ambos se encaravam.

E se afastou quando alguém bateu no vidro.

Era o socorro. Mas o maior socorro já havia chegado. Para ambos. A partir de situações tão controversas e desagradáveis, aconteceu o encontro. Destino? Mais do que destino. Era o amor unindo os predestinados e salvando-os de um futuro que não mereciam.

(Escrito por @Amilton.Jnior)