O CASARÃO DE CERRO LARGO - capítulo IV ( Final)

O trabalho de Lucinha parecia bom e deram mais uma examinada sem nada encontrar. Como estava muito cansado, Raul pegou logo no sono. Lucinha ficou um tempão ainda acordada. Como aquilo fora acontecer? Agora ele sabia de tudo. Talvez nem fosse se interessar por ela. E aquele beijo? Só em lembrar seu corpo ficava em chamas. E agora? Finalmente dormiu também. Acordou-se com o choro do sobrinho. Após arrumar-se e tomar café subiu correndo pra vê-lo. Segurar aquele nenenzinho era algo muito especial. E aí Joana falou:

- E então, pretende se casar um dia ?

Aquela pergunta repentina assustou a moça. Mas ela se conteve e disse fingindo desinteresse:

- É , um dia, mas ainda demora, não tenho pressa viu Joana?

A outra ficou quieta tentando descobrir alguma coisa atrás daquelas palavras. Mas Lucinha era muito esperta e conseguia disfarçar muito bem . Seria difícil pegá-la desprevenida. Mas o tal beijo dera alguma esperança a Raul que agora parecia mais confiante e a olhava ansioso, mas seguro.

E a vida transcorria igual naqueles dias de inverno recém entrado, amanhecendo tarde e anoitecendo bem cedo, com o fogão à lenha sempre aceso para aquecer a casa que entretanto ainda permanecia muito gelada ao chegar à sala e aos quartos. Naqueles tempos não se usavam lareiras, mas em momentos de frio exacerbado, eram colocadas bacias de cobre sobre tijolos, colocando-se dentro delas muitas brasas. Tinha-se então um aquecimento razoável naquele chamado braseiro. E os homens podiam acender seus cigarros de palha, e a prosa seguia mais confortável, onde se falava de criação, plantação, histórias de antepassados, novidades da vila, um sarau nada desprezível em que todos relaxavam após o jantar, preparando-se para um sono tranqüilo. E numa dessas noites em que todos, até o bebê de Joana estavam na sala, foi que Raul anunciou de repente que estava pensando em viajar pros lados da fronteira, passando pelas Missões até chegar a Livramento. Houve um silêncio repentino e Lucinha estremeceu porém sem mexer um músculo. Foi vagarosamente baixando os olhos e assim se manteve.

- Mas que bicho te mordeu, ainda que mal pergunte?

- Você me conhece, não sou de ficar muito tempo preso a um lugar, respondeu tentando ser natural.

- Sim, mas como pretendes ir, isso vai ser uma longa viagem. Não estás pensando em ir a cavalo, não é?

-Vou a cavalo até São Borja, depois tomo um trem e ponho o animal na carga.

-Bom, se você acha melhor, mas eu queria que ficasses por aqui, estás me ajudando e precisamos disso. Consegui aos poucos aumentar o rebanho que quando aqui cheguei contava pouco mais de cinquenta cabeças.

- Vou ver ainda Martiniano, estou acertando com um fazendeiro de lá. Ele vai me escrever pra fazer uma proposta. Aí eu te falo.

- Se é isso que te agrada, entonces deves ir. E o meu gurizinho, onde está?falou virando-se para o bebê, tentando amenizar o clima pesado.

Martiniano percebera a seriedade das mulheres, o silêncio de Lucinha e ficou desconfiado que elas estavam por demais afetadas por aquela notícia de Raul. Afinal, ele não era da família, era quase um estranho, e vivia pra cima e pra baixo. Então ficou matutando no que poderia significar tanta perturbação..

Logo o silêncio baixou sobre o casarão, e uma lua cheia imensa apontava no céu estrelado. Um cachorro vadio movimentava-se pelo quintal, e seu corpo magro indefinia-se entre as folhagens e com a incidência da luminosidade não daria pra saber o que exatamente era aquela ondulação claro-escuro. Lucinha tinha saído do quarto com cuidade e se pôs a olhar a paisagem, através de uma das enormes janela da sala. Era uma peça muito ampla, com móveis pesados, adquiridos em tempos de fartura, vindos de Pelotas, cidade muito próspera, onde famílias abastadas mandavam os filhos estudar em Coimbra e se servia à francesa nos grandes banquetes. Uma estrela a brilhar neste Rio Grande, uma dama luxuosa, que importava os ares europeus e vivia um mundo à parte, não sem fazer respingos de referências para outros lugares.

Ouviu-se um tropel de cavalo vindo das cocheiras. O coração de Lucinha acelerou em batidas tão fortes que ela quase não conseguia respirar. E num instante lá estava ele em frente à janela, pois vira de longe a figura da moça que se inclinara para frente. Sua camisola muito alva brilhava com os raios da lua e enrolada em um xale da mesma cor, era uma linda imagem naquela moldura. Ficaram em silêncio por alguns instantes, momentos que pareciam querer prolongar para não quebrar o encantamento. Ela então subiu ao parapeito esquecendo que não era mais criança e saltou para fora com presteza. Subiu de um salto à garupa do malacara abraçando-se ao corpo do rapaz. Este puxou as rédeas , girou para o lado e saiu a galope campo afora. Era uma linda imagem sob aquele luar. Agora os dois brilhavam como diamantes. A natureza os fizera fortes, destemidos, impulsivos e vorazes. Eram pessoas que não se contentariam em passar pela vida. Eles careciam de extravasar aquela incandescência de criaturas que não seriam domadas, nas quais ninguém poria freios nem buçal, nem arreios de montaria. Muito menos as terríveis cangas que faziam de muita gente animal manso e escravo.

Já ia amanhecedo quando retornaram. Dona Fermina dera pela falta da filha e já se punha alertar a todos na sua procura. Mas em seguida viu Lucinha pulando da garupa e abraçando-se a Raul que já apeava num salto.

Novamente o casarão foi movimentado por um casamento sem grandes pompas, com uma noiva usando um vestido simples e um ramo de flores nos cabelos, flores colhidas pelos caminhos, flores nativas para outra flor que como elas, nascera livre naqueles campos, tinha o cheiro agreste e a a alma indômita de uma Ana Terra.

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NOTA DA AUTORA

Este é o meu primeiro conto mais longo, que na verdade se estendeu bastante. É um texto que comecei a escrever há uma ano, mas estava ainda pelo meio. Resolvi então concluí-lo como exercício e não aprofundei referências por não ter pesquisado. Aceito comentários críticos e sugestões. Um abraço !!

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 05/11/2007
Reeditado em 14/04/2008
Código do texto: T724213
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